01/04/2023
Ano 25 Número 1.314
ARQUIVO
ANTONIO NAHUD |
Antonio Nahud
A ALEGRIA DE VIVER
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Nunca fui de rir muito. Na primeira juventude, não me
interessava por piadas ou humorísticos de tevê, nem ria de doidos, bichas,
bêbados, inválidos e anões como a maioria dos cruéis meninos provincianos e,
no cinema, somente me esbaldava com antigas comédias sofisticadas, de Howard
Hawks a Billy Wilder, ou um ou outro filme italiano. Mas não faço pose de
sisudo, tenho um certo humor sutil e para o meu júbilo sou capaz de gozar de
cerimônias de casamento, formaturas, velórios, discursos políticos, reality
shows e dos meus desacertos e paixões. Nunca tive favoritismo por escritores
bem humorados, mesmo bons como João Ubaldo Ribeiro ou Henry Fielding, embora
goste religiosamente das crônicas divertidas de Sérgio Augusto ou da acidez
hilária de Dorothy Parker, Mencken e do nosso Paulo Francis. Passei adiante
todos os livros de Luis Fernando Veríssimo que ganhei de presente e o Xangô,
do Jô Soares, não consegui ler mais de cinco páginas. Acho o Jô um chato.
Organizando minha biblioteca, com o propósito de dispor os autores por gênero
literário e ordem alfabética, encontrei a fotografia da jornalista Mayra Lemos
tirada em Barcelona e, imediatamente, admirando o riso escrachado da amiga,
numa selvagem alegria quase impossível, refleti sobre o pouco que rimos. Então
decidi rir um pouco mais. Estou cansado e aborrecido de enfrentar com
severidade a própria vida.
Deus não ri nunca. Talvez ridicularize na
sua intimidade com a estupidez de suas criaturas, como fica claro nos
Provérbios: “também eu darei risada de vossa calamidade” (1,26). Na Bíblia, o
poderoso não dá nenhum maldito riso de alegria, creia-me meu caro leitor.
Tampouco os seus profetas, anjos e santos. O curioso é que Jesus Cristo também
não ri. Em nenhum fragmento dos Evangelhos há rastro de sorrisos do homem que
desejou ser homem: nada, nem mesmo um daqueles sorrisos de canto de lábios
para consolar o melodramático fiel cristão. E o cômico é uma experiência
fundamental e universal dos seres humanos, não existe nenhuma cultura que não
use e abuse dele, até mesmo os portugueses com a sua dor perpétua sabem
sorrir. Todos os homens, inclusive os de bom coração, já riram alguma vez.
Sendo assim, Cristo deveria haver-nos deixado seu sorriso, já que não pensou
duas vezes em deixar para a posterioridade sua humana cólera e seu humano
pranto.
Há toda uma tradição filosófica e literária de descrédito da
risada, muito mais enraizada que o contrário. Aristóteles, num texto conhecido
na Antiguidade Romana como “De Partibus Animalium”, já fazia observação sobre
o riso. Apesar do riso dos deuses homéricos, que não viam grandes
incompatibilidades entre a gargalhada e as obrigações de seu cargo, vingou a
idéia que a risada, assim como a fantasia, tem um papel perturbador que o
torna inconveniente para o perfeito funcionamento não só para a República dos
homens como para o próprio Paraíso de Deus. O riso durante muito tempo foi
marginalizado, convertido em algo que nos aproximava dos animais. Médicos
estudaram o fenômeno, como o francês Laurent Joubert, que escreveu em 1579,
“Tratado do Riso”. Descartes analisou o lugar do riso entre as emoções e
autores humanistas enfatizaram que o riso é sinal de desprezo. Baudelaire
extraiu uma conclusão mórbida: se Deus não ri, o riso, sem deixar de ser
profundamente humano, está envolvido com o satânico. Não é necessário ser tão
radical, o riso diabólico dos ateus Gregório de Mattos e Ivan Karamazov não é
o único riso possível. Cervantes ensinou que devemos gracejar de nós mesmos,
da nossa peculiar e ridícula condição humana. Já Mona Lisa (1503-06), a
Gioconda de Da Vinci, desde o Renascimento vem divulgando o sorriso mais
enigmático e célebre da história das artes.
No início da época moderna,
o sorriso foi considerado nobre e o riso vulgar, ou seja, neste último há
sempre a intenção de escárnio ou zombaria. O primeiro definiu-se como
inteligente e elegante, já o segundo não era considerado de bom gosto. Autores
cômicos como Ben Johnson, Molière, John Ford ou Shakespeare, levavam o público
ao delírio cômico satirizando avarentos, hipócritas e vaidosos. Em um dos
livros do Lord Chesterfield, este recomenda a seu filho que evite a risada
porque é um sinal de grosseria, longe do que se espera da gente bem educada.
Uma austeridade absurda que exigia o homem como figura artificial e estática.
A risada só adquiriu o seu pedigree no romantismo. Liberado e santificado,
tornou-se subversão contra os podres poderes, protesto contra as tristezas do
cotidiano, o verdadeiro chute no pau da barraca. Um dos padrinhos do riso
moderno foi o Zaratustra nietzscheano, para quem toda verdade é falsa se não
vem acompanhada ao menos de um sorriso, um procedimento muito mais eficaz que
a ira. O jornalista iconoclasta H. L. Mencken (1880-1958), escrevendo colunas
semanais de 1904 a 1948, além de publicar dois a três livros por ano, provocou
muitas risadas ao criticar o homem comum norte-americano, escravizado por
ambições baratas, superstições e medos.
O sorriso é uma expressão
natural de prazer e, especialmente, de cumplicidade. É o sinal de uma certa
jovialidade e um certo ânimo alegre que o homem sente no interior de sua
mente. O sorriso pode inclusive expressar amor. Todos sabemos que existem
diferentes tipos de riso. Pode-se rir por desespero, como alguns personagens
de Beckett, por incredulidade, por desprezo, por medo, por pura alegria. Tenho
uma amiga, Corina, que ri até as lágrimas, mas nunca sei se realmente está
feliz ou é um descontrole grotesco do espírito. À caminho do trabalho, venho
no mesmo automóvel que um gordo engenheiro, e ele me surpreende com o seu
perpétuo bom humor, mesmo enfrentando uma série de problemas de saúde e
financeiro. Não sei de quê ou porque estava rindo a bela Mayra na fotografia
que provocou esse passeio pelo sorriso. Porém, confesso, nesses tempos de
mediocridade e ignorância generalizada, tenho vontade de rir um pouco mais. Na
realidade, e pedindo perdão pela tristeza, tenho encontrado a humanidade tão
risível, tola e ridícula, que eu mesmo riria da minha própria cara. Como disse
o sociólogo Edgar Morin “Não sou otimista nem pessimista. Penso que caminhamos
para prováveis catástrofes, mas pode ser que o improvável aconteça, como já
foi muitas vezes o caso na história”. E terminando estas linhas, deixo para
você caro leitor, o meu sorriso, mesmo não garantindo o gracejo de bom humor e
benevolência. Talvez tenha o temperamento frio e seco e, portanto, “dotado de
coração pequeno e duro”, como teorizou o médico Laurent Joubert,
diagnosticando que é especialmente benéfico incentivar a alegria nos
indivíduos de tal atitude. Está correto? Pode ser, mas quero o que toda a
humanidade quer: a alegria de viver. A única maneira de alcançar esse objetivo
será sentir-me comovido com o mundo a minha volta. Só assim virá o sorriso e
não só o riso.
Referências Sérgio Augusto: O Lado B. Companhia
das Letras, 2001. Charles Baudelaire: “Da Essência do Riso/De l´essence du
rire et généralement du comique dans lês arts plastiques”. 1855. Richard
Burton: A Anatomia da Melancolia. 1621.. Ruy Castro: “A Mente Iconoclasta”
em O Livro dos Insultos. Círculo do Livro. São Paulo. Lord Chesterfield:
The Letters of the Earl of Chesterfield to His Son. Ed. Charles Strachey.
Methuen, Londres, 1924. Descartes: As Paixões da Alma. 1648. Henry
Fielding: Joseph Andrews. H. L. Mencken: O Livro dos Insultos / A Mencken
Chrestomathy. Círculo do Livro. São Paulo. Daniel Piza: O Dicionário da
Corte de Paulo Francis. Companhia das Letras, 1997. François Rebelais:
Pantraguel. 1533. Quentin Skinner: “A Arma do Riso”. Mais!, Folha de S.
Paulo, 2002.
(Reedição de 12 de julho/2003)
Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN
Antonio Júnior segue a caminhada de escritores como Bruce Chatwin, François
Augiéras e Paul Bowles. Viaja por diversos países,
fotografando e escrevendo um diário de viagem. Escreve para as revistas Go
(Barcelona), Veludo (Lisboa), Simples? (SP) e é correspondente do jornal A
Tarde (Salvador, Bahia). Sua mais recente entrevista foi com a cantora
portuguesa Dulce Pontes.
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