01/12/2024
Ano 27
Número 1.393

 

 

ARQUIVO
ANTONIO NAHUD

Antonio Nahud



Pequenas Histórias Sobre o Delírio Peculiar Humano
05. TENTATIVA DE CONTROLE
 

Antonio Nahud - CooJornal

Sentado na poltrona, os olhos pregados na pequena tela. Tudo parece suspenso. Uma mariposa negra e prata dança em volta da luminária, provocando curtos de luz e sombras. É o momento em que a caravana comandada por Henry Fonda entra no acampamento miserável californiano, numa fotografia expressionista de Gregg Toland de encantar os olhos. Ele está desligado, não faz diferença o que passa na tevê. É como se todos os objetos se movimentassem e ele estivesse imóvel. Acabara de matar uma mulher, sufocando-a com um travesseiro de penas de ganso.

Estela, com quem vivera nos últimos quatro anos, costumava compartilhar conversas humoradas, untadas com malícia. O contato diário, cotidiano, deixava-o inflamado de desejo, viciado no cheiro dela, na forma como caminhava com passos curtos e silenciosos. Não conseguia ficar muitas horas sem ela, inclusive fazendo questão de levá-la e apanhá-la no trabalho; iam jantar em restaurantes caros, pegavam um cinema. Vivia para vê-la de lábios sutilmente pintados, virtuosa, entregando-se com uma tímida relutância.

Antes de matá-la, nada disse para a mulher amada, não deu qualquer explicação. Os olhos de lamparina se apagaram e nem ao menos chorou, deixando o corpo sem vida jogado na cama e dirigindo-se à poltrona, sabendo que não valeria a pena perder a cabeça.

Está saturado de sensações. Está exausto. Como poderá superar essa dor que congela o seu coração? Poderia ter perguntado: "Minha filha, por que não recusou as investidas sexuais daquele médico de brinco na olheira e cabelo comprido?". Preferiu não ter um ritual, apenas uma conclusão. Daí o salto inesperado em cima dela, a morte rápida, o vermelho-vivo de um grito sem voz. Ela sempre criticava o colega do hospital, onde trabalhava como enfermeira-chefe. Sendo honesto por natureza, não via a causa de tanta implicação. "Ele fez alguma proposta indecente para você?". "Oh, claro que não, questiono a competência da sua atuação profissional". "Deixe-o em paz, cuide do seu serviço e não quero saber histórias de um homem que nunca vi", concluiu. Estela não voltou a tocar no nome do possível amante, mas não conseguiu evitar um frágil nervosismo, uma hesitação ao deixar o carro do marido, atravessar a rua e pegar o corredor que a levaria ao seu setor.

Ele acostumou-se a dar voltas no quarteirão, imaginando em que andar eles se encontravam às escondidas. Na festa de final de ano, quatro meses passados, ela bebeu demais, enchendo uma taça de vinho branco atrás da outra. "Eu quero estar para sempre com você, querido" - disse no meio de frases confusas. Ele passou os olhos por todos os homens presentes, uns vinte, e soube sem qualquer dúvida quem era o rival, um bonitão de cabelos nos ombros, grisalhos. Olhou-o incisivamente, o outro cumprimentou com a cabeça, sorriu com delicadeza e abraçou uma senhora bonita enfeitada com um vestido extravagante. Ligou os fios, certificando-se da situação. "Você quer ir embora, não?" - perguntou. "Não me sinto bem nessas ridículas confraternizações. São encontros falsos, intolerantes, onde os nossos companheiros e a nossa forma de vestir na privacidade são analisados impiedosamente. É muita gentileza da sua parte acompanhar-me, eu não saberia como comportar-me sem você". "Eu ainda sou o seu marido".

Ao levantar-se, ajeitou a saia, pegou a bolsa, e seus olhos perderam-se em algum ponto do salão de baile. Pareceu decepcionada, exposta como se estivesse nua, o corpo curvando-se em certos pontos. Sem transformações, segurou-a firme pela mão e encaminharam-se para a porta de saída. O mundo afundava, pois tinha certeza da traição. O nó na garganta triturava palavras.

Em casa, tirou uma rosa azul do jarro do centro-de-mesa, levando-a para a infeliz. "Eu te amo muito, Estela", disse suavemente. A mulher sorriu, as pálpebras pesadas de sono. Foi quando pressionou o travesseiro no rosto pálido. Estela pouco se debateu, numa reação minúscula. Confirmando a morte, ligou a tevê. Agradou-lhe a possibilidade de rever o clássico de John Steinbeck filmado. Terá que acostumar-se com a casa desabitada, solitária, com acúmulos de penosos silêncios. Depois do filme, pensaria numa forma de desfazer-se do corpo. Procuraria também uma palavra, só uma, uma única palavra, integra, inevitável, estranha na sua condição de puro êxtase. Abre a caixa de fósforos, risca um deles, acendendo o cigarro, e por toda a parte repara uma intimidade implacável, permanentemente reservada, enigmática.

(RT, CooJornal, março 2002)


Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN

Antonio Júnior segue a caminhada de escritores como Bruce Chatwin, François Augiéras e Paul Bowles. Viaja por diversos países, fotografando e escrevendo um diário de viagem. Escreve para as revistas Go (Barcelona), Veludo (Lisboa), Simples? (SP) e é correspondente do jornal A Tarde (Salvador, Bahia).

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