01/06/2024
Ano 27
Número 1.369


 

 

ARQUIVO
ANTONIO NAHUD

Antonio Nahud



CHET BAKER - COMO SE TIVESSE ASAS

 

Antonio Nahud - CooJornal

Ele gostava com desespero de jazz e de drogas pesadas. A essência de sua vida, um caos incessante atravessado pelo talento mais puro. Drogado e inconsequente, era expulso de hotéis e faltava a compromissos profissionais. Tal como Rimbaud, cuja reputação não valia nada na sua época, hoje Chet Baker é uma lenda, um dos músicos determinantes da história do jazz, respeitado por críticos de todo o mundo e influenciando uma legião de músicos. O que ninguém lembra é que foi perseguido e vetado nos clubes de jazz cool da Costa Oeste norte-americana, e também de Nova York, e teve que sobreviver durante muito tempo na Europa, mostrando as rugas precoces e manejando o trompete com um virtuosismo e originalidade insuperáveis.

Conheci a música e a história de Chet Baker no final dos anos 80, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O documentário dirigido por Bruce Weber, mostrava o jovem Chet, belo e atraente, e também o homem decadente e arruinado dos últimos anos. Um poético filme de 1988, ano em que ele morreu, que o apresentava tocando na penumbra do estúdio de gravação ou vagando pela noite no acento traseiro de um descapotável luxuoso. Antes ouvira falar dele através da cantora Jussara Silveira e do amigo jornalista Luis Wilde. Comprei a trilha sonora de Let's Get Lost e colecionar discos de Chet Baker passou a ser um dos principais vícios. Na Tower Records, em Londres, adquiria um novo trabalho dele quase semanalmente, e visitei um dos seus redutos mais célebres, o club Ronnie Scott's. Em Barcelona, estive no Jamboree, na Plaza Real, onde deu espetáculo em dezembro de 1963. Li em espanhol suas memórias, Como si Tuviera Alas - Las Memorias Perdidas (Mondadori, 1999), um livro irregular, porém válido pela escrita vertiginosa. Muito melhor é o cru relato de Billie Holliday, Lady Sings the Blues; o caótico e ácido Beneath the Underdog do contrabaixista Charlie Mingus ou as impressões íntimas e explícitas de Duke Ellington em Music is my Mistress.

A música de Chet, que tem o sentido do silêncio, influenciou-me poeticamente e nunca deixei de citá-lo em entrevistas, crônicas ou contos. Tornou-se um parceiro, um irmão, um amante. Falei dele para amigos, desconhecidos e fãs do cantor. Faltava um texto somente para ele, uma dívida que tinha que pagar. Costumo ler ouvindo Imagination (Burke-Van Hursen), Stella by Starlight (Young-Washington) ou Retrato em Branco e  Preto  (Tom Jobim), interpretações suas antológicas. A sua versão do clássico My Funny Valentine (Rodgers-Hart) é de arrepiar a alma, superando inclusive a da diva Sarah Vaughn. Com ele descobri que o jazz é o gênero musical por excelência, que realmente me toca, o mais perfeito e sensível. Numa noite, num bar lisboeta do Bairro Alto, eu e Emílio Santiago, outro chetmaníaco de carteirinha, passamos horas falando sobre a música e a vida dele. Então fiquei sabendo que o cantor, mal resolvido sexualmente, costumava estar sempre acompanhado em gravações e apresentações com um bonito adolescente e na boêmia com garotas fabulosas. A mídia, somente por seus casos femininos divulgados na imprensa rosa, insiste em nomeá-lo como um "tarado por mulheres". Um heroinômano tarado? Não acredito. Nunca conheci nenhum viciado em heroína louco por sexo. A infame droga basta; é o gozo total.

Em Amsterdam não consegui passar na rua do hotel em que morreu. O mesmo havia acontecido na Inglaterra, marcando inúmeras vezes para ir ao rio Ouse, palco do suicídio com pedras nos bolsos de Virgínia Woolf, e nunca tinha a valentia suficiente. Chet morreu de forma irracional, bizarra. Ele caiu no vazio quando escalava a fachada de um hotel, procurando chegar ao terceiro andar onde esquecera o trompete. Não podia passar pela recepção porque acabara de ser expulso. Hoje Hollywood pensa em filmar a sua vida numa grande superprodução e com Leonardo DiCaprio como protagonista. A viúva de Chet, a ex-modelo inglesa Carol Jackson, apoia o projeto. Deus nos acuda! Com certeza será uma xaropada com mensagem moral, conteúdo nulo, efeitos maravilhosos, uma trilha fantástica e os aspectos mais soturnos e agressivos de sua biografia borrados. No final dos anos 50, sua história quase chegou às telas na pele do insosso Robert Wagner.

Chesney Henry Baker nasceu em Yale, Oklahoma, no ano da Depressão, 1929, e teve a vocação musical incentivada pelos pais. Ainda adolescente, impressionou o visionário Charlie Parker, o Bird, o inventor do bebop, que anunciou aos quatro ventos o seu talento. Começou a ser conhecido atuando em um quarteto em Nova Orleans, que contava com o brilhante saxofonista Gerry Mulligan como um dos membros. Nem todos compreenderam a música idílica, discreta, melancólica, relaxada e romântica, e alguns colegas denunciaram sua linearidade, ausência de contrastes e apego aos registros médios. No início dos anos 50, já uma estrela, tocando em parceria com o genial Stan Getz, causava impacto a sua beleza de indolência calculada, juvenil, frágil, com uma sombra de desamparo, lembrando James Dean. Consumindo diariamente dez gramas de heroína e dez gramas mais de cocaína, passou temporadas em hospitais e no cárcere, acossado por policiais. Nas memórias, deixa claro que tanto os momentos de sufoco como os de glória lhe foram indiferentes.

Único e universal, foi magistralmente retratado ainda jovem pelo fotógrafo William Claxton, surgindo o livro Young Chet. O período europeu gerou álbuns fotográficos como Chet Baker in Concert. Na Itália e na Alemanha também detiveram-no por portes de drogas. Em 1964 se viu forçado a voltar para os Estados Unidos, não sendo levado a sério. Terminou brutalmente surrado em 1968, na Califórnia, por narcotraficantes, perdendo os dentes. Para sobreviver, trabalhou num posto de gasolina, até que um produtor musical pagou a sua dentadura. Passou três anos praticando para recuperar o domínio técnico. Pouco antes de morrer, reconheceu essa tragédia como um dos piores momentos de sua vida. Ajudado por Dizzy Gillespie conseguiu um contrato e nunca mais parou de gravar, resultando na melhor fase de sua carreira.

Protótipo do inconformista, Chet é um mito principalmente pela sua música cheia de sensibilidade, superando uma vida que afundou nos infernos das drogas, de dura sobrevivência artística e velhice autodestrutiva. Nos últimos anos, tocava curvado e sentado num banco, e em certas ocasiões, dava vexame. "Toco cada canção como se fosse a última", costumava dizer. Eu tenho verdadeira adoração por sua criação. É o melhor trompetista e cantor de todos os tempos (sim, a voz é curta, limitada, mas o que importa? João Gilberto não é o nosso maior intérprete?). As quatro letras de seu nome bem pronunciadas soam como uma declaração de amor: C-h-e-t.

(RT, CooJornal, março 2002)


Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN

Antonio Júnior segue a caminhada de escritores como Bruce Chatwin, François Augiéras e Paul Bowles. Viaja por diversos países, fotografando e escrevendo um diário de viagem. Escreve para as revistas Go (Barcelona), Veludo (Lisboa), Simples? (SP) e é correspondente do jornal A Tarde (Salvador, Bahia).


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