Antonio Nahud
CHET BAKER - COMO SE TIVESSE ASAS
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Ele gostava com desespero
de jazz e de drogas pesadas. A essência de sua vida, um caos incessante
atravessado pelo talento mais puro. Drogado e inconsequente, era expulso de
hotéis e faltava a compromissos profissionais. Tal como Rimbaud, cuja
reputação não valia nada na sua época, hoje Chet Baker é uma lenda, um dos
músicos determinantes da história do jazz, respeitado por críticos de todo o
mundo e influenciando uma legião de músicos. O que ninguém lembra é que foi
perseguido e vetado nos clubes de jazz cool da Costa Oeste norte-americana, e
também de Nova York, e teve que sobreviver durante muito tempo na Europa,
mostrando as rugas precoces e manejando o trompete com um virtuosismo e
originalidade insuperáveis.
Conheci a música e a história de Chet Baker
no final dos anos 80, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O
documentário dirigido por Bruce Weber, mostrava o jovem Chet, belo e atraente,
e também o homem decadente e arruinado dos últimos anos. Um poético filme de
1988, ano em que ele morreu, que o apresentava tocando na penumbra do estúdio
de gravação ou vagando pela noite no acento traseiro de um descapotável
luxuoso. Antes ouvira falar dele através da cantora Jussara Silveira e do
amigo jornalista Luis Wilde. Comprei a trilha sonora de Let's Get Lost e
colecionar discos de Chet Baker passou a ser um dos principais vícios. Na
Tower Records, em Londres, adquiria um novo trabalho dele quase semanalmente,
e visitei um dos seus redutos mais célebres, o club Ronnie Scott's. Em
Barcelona, estive no Jamboree, na Plaza Real, onde deu espetáculo em dezembro
de 1963. Li em espanhol suas memórias, Como si Tuviera Alas - Las Memorias
Perdidas (Mondadori, 1999), um livro irregular, porém válido pela escrita
vertiginosa. Muito melhor é o cru relato de Billie Holliday, Lady Sings the
Blues; o caótico e ácido Beneath the Underdog do contrabaixista Charlie Mingus
ou as impressões íntimas e explícitas de Duke Ellington em Music is my
Mistress.
A música de Chet, que tem o sentido do silêncio,
influenciou-me poeticamente e nunca deixei de citá-lo em entrevistas, crônicas
ou contos. Tornou-se um parceiro, um irmão, um amante. Falei dele para amigos,
desconhecidos e fãs do cantor. Faltava um texto somente para ele, uma dívida
que tinha que pagar. Costumo ler ouvindo Imagination (Burke-Van Hursen),
Stella by Starlight (Young-Washington) ou Retrato em Branco e
Preto (Tom
Jobim), interpretações suas antológicas. A sua versão do clássico My Funny
Valentine (Rodgers-Hart) é de arrepiar a alma, superando inclusive a da diva
Sarah Vaughn. Com ele descobri que o jazz é o gênero musical por excelência,
que realmente me toca, o mais perfeito e sensível. Numa noite, num bar
lisboeta do Bairro Alto, eu e Emílio Santiago, outro chetmaníaco de
carteirinha, passamos horas falando sobre a música e a vida dele. Então fiquei
sabendo que o cantor, mal resolvido sexualmente, costumava estar sempre
acompanhado em gravações e apresentações com um bonito adolescente e na boêmia
com garotas fabulosas. A mídia, somente por seus casos femininos divulgados na
imprensa rosa, insiste em nomeá-lo como um "tarado por mulheres". Um
heroinômano tarado? Não acredito. Nunca conheci nenhum viciado em heroína
louco por sexo. A infame droga basta; é o gozo total.
Em Amsterdam não
consegui passar na rua do hotel em que morreu. O mesmo havia acontecido na
Inglaterra, marcando inúmeras vezes para ir ao rio Ouse, palco do suicídio com
pedras nos bolsos de Virgínia Woolf, e nunca tinha a valentia suficiente. Chet
morreu de forma irracional, bizarra. Ele caiu no vazio quando escalava a
fachada de um hotel, procurando chegar ao terceiro andar onde esquecera o
trompete. Não podia passar pela recepção porque acabara de ser expulso. Hoje
Hollywood pensa em filmar a sua vida numa grande superprodução e com Leonardo
DiCaprio como protagonista. A viúva de Chet, a ex-modelo inglesa Carol
Jackson, apoia o projeto. Deus nos acuda! Com certeza será uma xaropada com
mensagem moral, conteúdo nulo, efeitos maravilhosos, uma trilha fantástica e
os aspectos mais soturnos e agressivos de sua biografia borrados. No final dos
anos 50, sua história quase chegou às telas na pele do insosso Robert Wagner.
Chesney Henry Baker nasceu em Yale, Oklahoma, no ano da Depressão, 1929, e
teve a vocação musical incentivada pelos pais. Ainda adolescente, impressionou
o visionário Charlie Parker, o Bird, o inventor do bebop, que anunciou aos
quatro ventos o seu talento. Começou a ser conhecido atuando em um quarteto em
Nova Orleans, que contava com o brilhante saxofonista Gerry Mulligan como um
dos membros. Nem todos compreenderam a música idílica, discreta, melancólica,
relaxada e romântica, e alguns colegas denunciaram sua linearidade, ausência
de contrastes e apego aos registros médios. No início dos anos 50, já uma
estrela, tocando em parceria com o genial Stan Getz, causava impacto a sua
beleza de indolência calculada, juvenil, frágil, com uma sombra de desamparo,
lembrando James Dean. Consumindo diariamente dez gramas de heroína e dez
gramas mais de cocaína, passou temporadas em hospitais e no cárcere, acossado
por policiais. Nas memórias, deixa claro que tanto os momentos de sufoco como
os de glória lhe foram indiferentes.
Único e universal, foi
magistralmente retratado ainda jovem pelo fotógrafo William Claxton, surgindo
o livro Young Chet. O período europeu gerou álbuns fotográficos como Chet
Baker in Concert. Na Itália e na Alemanha também detiveram-no por portes de
drogas. Em 1964 se viu forçado a voltar para os Estados Unidos, não sendo
levado a sério. Terminou brutalmente surrado em 1968, na Califórnia, por
narcotraficantes, perdendo os dentes. Para sobreviver, trabalhou num posto de
gasolina, até que um produtor musical pagou a sua dentadura. Passou três anos
praticando para recuperar o domínio técnico. Pouco antes de morrer, reconheceu
essa tragédia como um dos piores momentos de sua vida. Ajudado por Dizzy
Gillespie conseguiu um contrato e nunca mais parou de gravar, resultando na
melhor fase de sua carreira.
Protótipo do inconformista, Chet é um mito
principalmente pela sua música cheia de sensibilidade, superando uma vida que
afundou nos infernos das drogas, de dura sobrevivência artística e velhice
autodestrutiva. Nos últimos anos, tocava curvado e sentado num banco, e em
certas ocasiões, dava vexame. "Toco cada canção como se fosse a última",
costumava dizer. Eu tenho verdadeira adoração por sua criação. É o melhor
trompetista e cantor de todos os tempos (sim, a voz é curta, limitada, mas o
que importa? João Gilberto não é o nosso maior intérprete?). As quatro letras
de seu nome bem pronunciadas soam como uma declaração de amor: C-h-e-t.
(RT, CooJornal, março 2002)
Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN
Antonio Júnior segue a caminhada de escritores como Bruce Chatwin, François
Augiéras e Paul Bowles. Viaja por diversos países,
fotografando e escrevendo um diário de viagem. Escreve para as revistas Go
(Barcelona), Veludo (Lisboa), Simples? (SP) e é correspondente do jornal A
Tarde (Salvador, Bahia).
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