Antonio Nahud
Em Busca do Cine Brasileiro Esquecido
A TERRA PROMETIDA
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Um dos filmes míticos do Cinema Novo - um polêmico e
renovador movimento responsável por uma geração prodigiosa de diretores -, São
Paulo S.A (1965) é um drama de riqueza estética e social, misturando
documentário e ficção de maneira fragmentada, usando cortes repentinos, num
estimulante exercício de linguagem. Apoiado argumentalmente sobre a crise
existencial de um jovem empresário vitorioso (Walmor Chagas), perdido num
mundo que o leva a ganhar dinheiro a qualquer custo - numa terra prometida, a
São Paulo em desenvolvimento desordenado e em crescimento industrial, símbolo
então da prosperidade e da abundância. Sua mimada esposa (Eva Wilma, com a
mesma voz inconfundível e fraterna), uma burguesa acomodada, insiste na
continuação de uma posição social de sucesso financeiro; a ex -amante, a
frívola e interesseira Darlene Glória, provoca-o com seu sentido de luxo e
ganhos fáceis; o sócio, um imigrante italiano que enriqueceu à base de golpes
desonestos, envolve-o num cotidiano corrupto e falso, incluindo o universo
familiar. Com certa habilidade teatral, Walmor Chagas, na época marido e
parceiro profissional da atriz número um do teatro nacional, Cacilda Becker,
concede a expressão angustiada e o desequilíbrio necessários para expor o
inconformismo de Carlos. Walmor, um ator pouco lembrado, tem méritos próprios.
Num texto de Edward Albee, montado em 99, mesmo sem atuar há anos, ele varria
de cena Tônia Carrero, Luís de Lima e Ítala Nandi.
Filme incômodo e
transgressor, agressivo na sua análise intimista, cronista sombrio da vida, de
uma moral atormentada, São Paulo S/A é também - e principalmente - um canto de
amor ao gigantismo e à desumanidade de São Paulo, captada generosamente pela
fotografia do argentino Ricardo Aronovich, um mestre que em sua temporada
brasileira filmou com Ruy Guerra, Leon Hirzsman e Eduardo Coutinho. São
imagens atormentadas de arranha-céus, indústrias automobilísticas, a avenida
Paulista, o viaduto da Sé, o parque do Ibirapuera, a multidão anônima,
exposições de arte, imigrantes, pregadores religiosos, estacionamentos
futuristas, o subúrbio. É uma apaixonada crônica de costumes que lembra
Yasujiro Ozu em sua poesia e sinceridade. O diretor e roteirista paulista Luís
Sérgio Person, que morreu em 1976 aos 39 anos, vítima de um acidente de
carro, não passou para a história como Glauber Rocha ou Nelson Pereira dos
Santos, mas sem dúvida com este filme construiu uma das obras mais sólidas do
cinema brasileiro. Dois anos dois, repetiria o feito em O Caso dos Irmãos
Naves, com Juca de Oliveira e Raul Cortez. Seu talento dramático e pictórico
particularmente ilumina São Paulo S/A na abertura operística, no furioso e
carnal beijo trocado entre os amantes na praia do Guarujá, nos rostos filmados
nas ruas (um recurso usado hoje pelo excepcional Walter Salles Jr.), à serviço
da investigaçao de uma cidade (e do homem urbano), numa perspectiva ideológica
e vital.
O original ponto de vista da narração é marcado pela bonita
música de Claudio Petraglia e um elenco pontuado por nomes notáveis em
pequenos papéis: Etty Frazer, Silvio Rocha e Otelo Zeloni (como o vigarista
Arturo). Uma sensual Darlene Glória, antes da explosão definitiva com Toda
Nudez Será Castigada (1974), brilha em closes, molhada, dançando, ou quando
canta o refrão "Soy pecadora como mujer de filme mexicano". Seria o prenúncio
de um mito cheio de faíscas como Odete Lara, Leila Diniz, Helena Ignêz ou
Adriana Prieto. No entanto, depois da cidade de São Paulo, a mais comovente
protagonista do filme é Ana Esmeralda. Interpretando a intelectual Hilda (será
uma referência à poeta Hilda Hilst, que na década de 60 tinha vida semelhante
naquela cidade?), com uma presença magnética entre Cleyde Yáconis e Fernanda
Montenegro, constrói um personagem profundo em seu infortúnio. "Eu devo amar",
ela diz. Hilda, a que queria demais da vida, cheira lança-perfume, tem
diversos amantes, veste-se elegantemente e fala com sabedoria de arte: "Quem
não viu Guernica, de Picasso, não conhece nada de pintura", ensina ao
companheiro. O seu suicídio acelera a insatisfação de Carlos.
São Paulo
S/A é o Brasil dos anos 60 e de hoje: o futebol, a praia, os truques
desonestos, a televisão, os valores familiares banalizados, o emergente poder
publicitário, o culto às celebridades, embora revele uma certa ingenuidade e
esperança diferentes do cinismo e descrença atuais. Atrevido e experimental,
com uma opção estética e visual em aberta confrontação com o enfoque dominante
do cinema brasileiro, uma audaz indignação formal que propõe novas formas
cinematográficas, é radical e verdadeiramente moderno, belo em sua memória
subjetiva exposta, clássico de referência para o desenvolvimento de um
cinematografia inteligente e harmoniosa. Qual o filme nacional do século vinte
e um que seria capaz de finalizar com o personagem central afirmando
alucinado: "Recomeçar. Mil vezes recomeçar. Recomeçar de novo, recomeçar
sempre. Recomeçar"? Não lembro nenhum, nem mesmo os mais recentes do
experimental Julio Bressane.
Sao Paulo S/A (Brasil, 1965)
Roteiro e Direçao: Luís Sérgio Person Fotografia: Ricardo Aronovich
Música: Cláudio Petraglia Montagem: Eduardo Escorel Elenco: Walmor
Chagar (Carlos), Eva Wilma (Luciana),Ana Esmeralda (Hilda), Otelo Zeloni
(Arturo), Darlene Glória (Ana), Etty Frazer, Silvio Rocha.
Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN
Antonio Júnior segue a caminhada de escritores como Bruce Chatwin, François
Augiéras e Paul Bowles. Viaja por diversos países,
fotografando e escrevendo um diário de viagem. Escreve para as revistas Go
(Barcelona), Veludo (Lisboa), Simples? (SP) e é correspondente do jornal A
Tarde (Salvador, Bahia).
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