Antonio Nahud
O PERFUME DE CAETANO
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para Márcia Dantas
São
três horas da madrugada e chega um ventinho fresco da serra. Sinto-o através
de uma grande janela, num sala elegante com móveis e objetos vistosos: desliza
por meu corpo, descansa por um instante, torna a correr. As mulheres se
protegem com abrigos leves e o cabeleireiros retocam os cabelos desfeitos.
Caetano Veloso, acompanhado de sua mulher e um trio de músicos, toma sopa de
alho. Observo o seu sorriso aberto, o corpo magro e bonito. Os olhos parecem
fugir do rosto dele. Os lábios, os dentes, os gestos, tem um brilho juvenil. A
sua pele parece condizer com o vago reflexo da iluminação castanha. Ele fala
com alguém, possivelmente um jornalista, sobre o seu novo e viçoso disco,
Noites do Norte. Não me aproximo, me sentiria ridículo e abusado em tentar um
contato, afinal ele é a estrela desta noite espanhola. É um intervalo da
filmagens de Hable con Ella, o novo filme de Almodóvar. Os sons são de
diversas tonalidades, as vozes das pessoas que estão perto afiguram-se-me
distantes, a voz de Caetano no outro lado da sala me soa nítida, tão vizinha
de mim, cada inflexão, cada sílaba, cada vogal.
Agustín, o irmão de
Almodóvar, abre uma garrafa de vinho para alguns convidados. Não abro a boca,
sou um brasileiro, um estrangeiro, e morreria de vergonha se alguém
anunciasse: "Caetano, há um patrício seu entre nós". Com o passar dos anos
aprende-se também a controlar o verbo, o devaneio, a admiração sentimental. A
substância do que somos feitos incorpora também a contemplação. Rendo meu
olhar a Caetano falando do orgulho que sente pelo filho Moreno e, logo depois,
rindo, da crontradição no jornalismo, que critica a indústria cultural e vive
de situações sensacionalistas. Ele faz pose, enxergo a cauda de pavão.
Uma mulher que não conheço, jovem e bonita, ouve também a conversa do
músico, e diz par mim: "Eu gosto de jornais, de redações, de conversas de
jornalistas em dias de fecho, que são conversas de trajeto fácil e pontaria
definida". Não entendo sua lógica e nada respondo, e a jornalista continua,
numa conduta arrogante e superficial: "Tantos escritores foram jornalistas:
Hemingway, Garcia Márquez, Martín Amis...". Aceito uma taça de vinho de um
garçom com pinta de sul-americano. Agradeço contente, não me sentindo o único
estrangeiro. Estou aqui a convite de Paco, um velho conhecido dono de uma loja
de artigos cinematográficos, amigo do diretor manchego.
O casarão está
situado nos arredores de Madri, a caminho da mágica Burgos. É, na realidade,
uma falsa festa, onde cerca de cinqüenta convidados posam de figurantes para
uma cena fundamental do filme que Almodóvar roda desde julho. Nesta cena, a
protagonista, a cantora Rosario Flores, que faz uma toureira e tem algo de
Maria Bethânia, se encontra em uma festa com um escritor (o argentino Dario
Grandinetti) que a persegue e está apaixonado por ela. Na festa canta Caetano
a ingênua e amaneirada Cucurrucucú Paloma (do disco Fina Estampa) que provoca
as lágrimas do enamorado. Desde a primeira vez que Almodóvar ouviu a gravação
do baiano quis incluí-la num de seus filmes Ia utilizá-la em La Flor de Mi
Secreto, porém Won Kar-wai foi mais esperto e colocou-a em Happ Together, sem
pedir permissão ao seu intérprete. Procuro entre tanta gente os rostos de
Geraldine Chaplin, que faz parte do elenco, e de Pina Bausch, cuja coreografia
abre e fecha a trama, e não as vejo. Reparo em Marisa Paredes e Cecilia Roth,
que já havia entrevistado em outras ocasiões para A Tarde, o compositor
Alberto Iglesias e a cantora brega Martírio, não reconheço nenhuma das outras
caras com pinta de fidalgos.
Há algo de calculado, de desagradável, de
dissimulado nestas reuniões de desinibidos aparentemente afetuosos. Javier
Câmara, que havia visto recentemente como Pepe em Lucía y el Sexo, de Julio
Medem, aparece sem que eu tenha notado de onde veio, tem a expressão mais
feliz do mundo Ele faz o enfermeiro Benito no filme e deve estar comovido com
a oportunidade de trabalhar com o pop realizador espanhol. A tal jornalista é
cortada no meio de um monólogo onde exibe que trabalha em tal jornal liberal,
inteligente, importante. "¡Todos a sus puestos! Sois todos actores de
primera", diz o diretor antes de gritar "¡Acción!". Eu, como muitos outros,
não faço parte da figuração de luxo e, de repente, vem na minha cabeça que é
um tempo de confusão e fraqueza de desorientação. O que estou pensando? Sinto
vertigem. Desvio os olhos para miudezas: uma revista abandonada numa cadeira
com Penélope Cruz na capa, um espelho imponente, um jarro de copos-de-leite e
os dedos do diretor de fotografia, Javier Aguirresarobe (Los Otros). Sussurro
palavras que não ouço faz tempo: bacana odara alto astral papo baby
nordestino. Canto baixinho: "Ouve bem o que te digo / tempo tempo tempo /
peço-te o prazer legítimo / e o movimento preciso". A memória fala, fala. Eu
adolescente no Porto da Barra, deitado numa toalha, com minha amiga Cinha ao
lado do grupo de Caetano; um início de noite de carnaval, na Praça Castro
Alves, com Caetano abraçando Dedé; o rosto pasoliniano de dona Canô na
procissão de Santo Amaro da Purificação; Jota dançando como um colibri; um
revéillon acompanhado de Pedro, o belo, filho de Gil, onde o autor de Araçá
Azul apareceu relâmpago; a leitura de Verdade Tropical em Londres visitando a
casa onde os tropicalistas viveram no exílio, em Chelsea; o original Cinema
Falado visto no cine Glauber Rocha; as poesias da doce Irene Veloso, um
concerto no Ibirapuera onde ele incentivava um aborrecido João Gilberto a
cantar. Sinto o perfume de Caetano, o perfume do seu espírito. Invento
magnólias, camélias, lírios. Há nesta festa artificial todos os ingredientes
necessários, os lugares-comuns, a absoluta banalidade que contêm todos os
encontros de amor. A lua rasga o tapete das estrelas, cintilam os corais das
profundezas da voz do baiano, o invisível cheira a aroma dos trópicos. Eu
estou muito bem num destes lugares uma destas noites, rolando a nostalgia e o
prazer como o mar rola os seixos na praia "¡Corten!", grita Almodóvar. Caetano
repete a música, uma e outra vez, nunca chegando ao final. Acontece que passa
um avião, a luz está forte, a câmara precisa ser ajustada e outras falhas
técnicas corriqueiras. "No dejen de estar poseídos por Caetano", grita o
diretor. Noto os primeiros sintomas de cansaço. Martírio abre a boca: "¡Pedro,
que nos dejas en coitus interruptus cada vez!¡Que cante Caetano!". Caetano se
diverte. Acredito que sua substância é toda feita das paixões do coração
humano. Este leonino tem algo de felino.
Quase ao amanhecer se acaba
de rodar a festa. Os ajudantes começam a recolher toda a tralha. Paco deixa o
seu posto de figuração e avisa-me que é hora de partir. Saio sem olhar para
trás, acolhendo de bom coração o vento agitado. Procuro o afável nos ruído do
vento. Como um sopro, uma lâmpada apaga-se. Será que todo mundo passa por este
estado? Por que tenho tão pouco controle? O meu acompanhante comenta algo da
história do drama romântico, falando de dois homens que amam a duas mulheres,
e elas só escutam. Respondo, "estou tomado pelo perfume de Caetano". É um
momento de uma alegria, uma inconsequência. Onde se esconde o tempo perdido?
Desenho na mente a rodovia deserta. Tudo é abstrato: os olhos cheios de
sombras e riscos geométricos. Me dá uma sensação de calma, de conclusão.
Escreverei: olhos tomados pelo perfume de Caetano, penso. Escreverei: não sou
estrangeiro, sou baiano! Assim como assim talvez me ajude a respirar
felicidades para continuar vivendo.
de Madri, CRÔNICAS DOS DIAS
ERRANTES
(novembro 2001)
(27 de julho/2002) RT, CooJornal no 269
Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN
Antonio Júnior segue a caminhada de escritores como Bruce Chatwin, François
Augiéras e Paul Bowles. Viaja por diversos países,
fotografando e escrevendo um diário de viagem. Escreve para as revistas Go
(Barcelona), Veludo (Lisboa), Simples? (SP) e é correspondente do jornal A
Tarde (Salvador, Bahia).
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