Antonio Nahud
LISPECTOR: A VIRGÍNIA WOOLF DOS TRÓPICOS
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A autora que
nasceu numa aldeia ucraniana que não existe no mapa e um dia foi retratada por
De Chirico, é lembrada por sua prosa bela e lúcida
Marrocos é um dos
países mais belos da terra. No tempo em que passei ali fiz amigos que, desde o
primeiro momento, soube que eram para sempre. A janela do meu quarto no
simplório hotel Jardin Publique, em Fez, ponto de encontro de estudantes ou
jovens com pouco dinheiro de todo o mundo, abria-se para a porta de Bab Bou
Jeloud, na entrada da medina. Tudo, desde os aromas do mercado popular até ao
movimento ruidoso da gente morena caminhando pela grande praça, misturando a
elegância e a miséria, convidava ao passeio, a busca de rostos. Porém, passei
toda uma tarde no meu quarto, num pufe de pele de carneiro, de costas para os
filhos de Moulay Idriss, lendo. A leitura é um vício poderoso, porém há
ocasiões, e aquela tinha que ser uma, que o chamado da vida é insubstituível,
e assim deixamos o livro e nos deixamos levar. Às vezes, e naquele dia de
outono foi assim, o livro é o vitorioso Lia Perto do Coração Selvagem (1944),
de Clarice Lispector, e fui absolutamente incapaz de separar-me dele até dar
conta de todas as suas páginas, mesmo tratando-se de uma reeleitura (li-o pela
primeira vez no ginásio, aos treze anos, e dez anos depois, com outros olhos).
Um livro visivelmente escrito com angústia. Ocorre-me sempre o mesmo com
Lispector. Com A Maçã no Escuro (1961), uma das grandes novelas da narrativa
literária brasileira; com Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969) e,
pouco depois do meu regresso de Marrocos com a leitura em espanhol de La Hora
de la Estrella (1977), este último romance publicado em vida por Clarice, com
uma das personagens-protagonistas míticas do nosso panorama literário -
Macabéia - , tão especial como Capitu, Diadorim, Gabriela ou Ana Terra. Muitos
poucos escritores brasileiros me proporcionaram um prazer comparável ao que me
produziu Perto do Coração Selvagem, primeiro romance de Lispector (1925,
Tchetchelnik, Ucrânia - 1977, Rio de Janeiro). Dividido em duas partes: na
primeira,a infância e a vida adulta de Joana; na segunda, o desenvolvimento de
um triângulo amoroso falido, terminando com um monólogo perturbador da
protagonista, onde lê-se: "nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de
qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo". Na
mesma estante com Clarice colocaria Lúcio Cardoso, Autran Dourado, Guimarães
Rosa, Adonias Filho, o primeiro Jorge Amado, Mário de Andrade, Rachel de
Queiróz e Graciliano Ramos. Por motivos diferentes, As Horas Nuas (1991) de
Lygia Fagundes Telles. Um prazer diretamente ligado à magia da palavra, ao
assombro permanente ante a força de situações e diálogos que, podendo resultar
sábios em obras de outros autores, neles levam a esperar mais, embora por
outro lado, seja inacreditável a possibilidade de "algo mais". Este é o tom de
Clarice, o nível de intensidade, ao longo de toda sua obra. Uma escritora
plena, traduzida para o inglês, o francês, o alemão e o espanhol, entre outros
idiomas.
Em A Hora da Estrela, vê-se o narrador-autor presente em todo
o texto, moldando a personagem à sua imagem e solidão, acabando por situá-la
(a autora) como uma espécie de Virgínia Woolf dos trópicos, não só porque
domina a psicologia e o monólogo interior como também as suas histórias, como
as da escritora de Bloomsbury, não têm um enredo definido, um começo, meio e
fim, segundo os cânones narrativos convencionais. E a aparente banalidade da
trama de A Hora da Estrela esconde um intimismo que alcança o hermético,
obrigando o leitor a debater-se entre uma estranha sedução e o mero
desconcerto. "Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe.
Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em
suas raízes submersas em profundidades de mar", escreveu Clarice em Um Sopro
de Vida (1978), onde novamente põe o dedo na chaga literária da criação. A sua
imaginação é extravagante à força de ser autêntica e sua obra insubstituível.
Tenho para mim que Clarice Lispector não é o bastante valorizada no Brasil,
embora seja verbalmente unânime entre escritores e críticos. Possivelmente, é
mais falada que lida. Quiçá, em parte, devido a narrativa que busca romper com
a barreira da palavra, com personagens geralmente tensas e inadaptadas a um
mundo hipócrita e cansativo. Mesmo assim o seu nome cresce com o passar dos
anos: é um dos poucos escritores brasileiros que recebe resenhas elogiosas em
França, Espanha e Portugal.
Eu estou sempre falando sobre Clarice a
estrangeiros interessados na sua obra. Por isso, levo comigo alguns livros
fundamentais de sua criação. Eu guardo os meus exemplares da obra de Clarice
desde a adolescência. Gosto de conservar certos livros como se estivessem em
extinção, como em Fahrenheit 451 de Ray Bradbury. Entretanto, mesmo única,
Clarice Lispector necessita urgentemente de ser "encarnada" em novos
escritores. Afinal, nunca mais houve no Brasil alguém com a sua força,
profundidade, extravagância e fragilidade. E termino com uma frase sua:
"Parece que me mitificaram. Eu não quero ser particular".
Impossível,
Clarice.
de Barcelona (outubro 2001)
Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN
Antonio Júnior segue a caminhada de escritores como Bruce Chatwin, François
Augiéras e Paul Bowles. Viaja por diversos países,
fotografando e escrevendo um diário de viagem. Escreve para as revistas Go
(Barcelona), Veludo (Lisboa), Simples? (SP) e é correspondente do jornal A
Tarde (Salvador, Bahia).
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