16/06/2022
Ano 25 Número 1.276
ARQUIVO
ANTONIO NAHUD |
Antonio Nahud
JEAN GENET: FADA DO AMOR E DA MORTE
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Num cemitério simples ao
lado de Tânger, entre campas de jovens soldados da Legião Espanhola, está o
túmulo de Jean Genet, o autor de Querelle de Brest (1947). O escritor, que
morreu num hotel de Paris em 1986, exigiu em seu testamento que fosse
enterrado no país onde Paul Bowles viveu a maior parte de sua vida, Marrocos,
próximo à casa que mandara construir anos antes. Estive na sua sepultura,
sentado durante mais de uma hora sobre ela, sem abrir a boca, observando o mar
tranquilo e sentindo o sol penetrante de uma tarde de outono. Não havia outros
visitantes, nenhuma concorrência como a do túmulo de Jim Morrison no Père
Lachaise. Nem sombra dos fanáticos que atravessam meio mundo para homenagear o
escritor francês com masturbações. Uma mulher de negro, com o rosto tapado
onde apenas se viam vibrantes olhos negros, surgiu num dos caminhos. Nos
olhamos por segundos e, neste rápido encontro de olhos, a reconheci sem saber
de quem se tratava. Foi como passar ao lado de um desconhecido na rua, saber
que o conhecemos e não ativá-lo na memória. Ela desapareceu tão rápido como
surgiu e eu lembrei de um relato de Genet, sobre um encontro num trem:
"olhando um viajante sentado diante de mim, tive a revelação de que qualquer
homem pode ser outro. Seu olhar não era dele: era o meu que eu encontrava em
um espelho, sem me advertir e em plena solidão e esquecimento de mim mesmo
(...) Saí do meu corpo, e pelos olhos, entrei no corpo do viajante, ao mesmo
tempo que o viajante tomava posse do meu". É o que mais gosto em Genet, sua
capacidade de transformar em poesia qualquer confissão, escândalo, banalidade,
curiosidade. Portanto nunca entendi o mito em torno do Genet veado, ladrão,
presidiário, revolucionário, maldito. Genet foi o amigo dos panteras negras e
dos palestinos, o escritor que fugia dos círculos intelectuais, provocando
admiração em Jean Cocteau e Jean-Paul Sartre. Mas o que importa é a prosa
lúcida e poética desse homem, seja no teatro (As Criadas, O Balcão), novelas
(Pompas Fúnebres, Nossa Senhora das Flores), ensaios (escreveu sobre
Giacometti, Rembrandt e Dostoievski), confissões (Diário de um Ladrão) ou numa
bela realização cinematográfica, Chant d'Amour (1950), cuja distribuição
comercial nunca autorizou. Filho de pai desconhecido e com um passado de
acusações de roubo, casas de correção, assistência pública, delinquências
vagabundas em França e Espanha, Jean Genet (Paris, 1910), abalou a moral
burguesa dos anos 40 com um poema feito na cárcere, O condenado à Morte
(1942), um canto de amor a um bandido chamado Lucien e um clássico pouco
falado, como o Teleny (1891), de Oscar Wilde, uma obra narrada por Camille des
Grieux, amante do personagem-título, misturando sedução e ciúmes, paixão e
deslealdade, brilhantismo e obscuridade. Continuou causando transtorno nos
valores morais com Nossa Senhora das Flores (1944), publicado por Jean
Cocteau; Querelle de Brest (1947), filmado com êxito por Fassbinder em 1982; e
finalmente Diário do Ladrão (1949). Mesmo publicando em editoras alternativas
e com divulgação restrita, seu nome passou a correr de boca em boca, graças a
uma literatura que conjuga beleza, morte e traição - valores sublimes da sua
estética literária. "A função da arte é substituir a fé religiosa pela
eficácia da beleza", disse. Sua magnificência verbal apresenta o sexo despido
de sensualidade, as virtudes de criminosos, violentos e covardes.
No
início dos anos 50, o mais célebre pensador do existencialismo, Jean-Paul
Sartre, escreveu "Saint Genet, Comédien et Martyr", expondo definitivamente o
marginalizado Genet na vida mundana. Foi um choque para o escritor, que se
sentiu "incorporado" a uma sociedade que não suportava, ou seja, caído nas
malhas do seu próprio mito. Fotografado por Brassaï, entrevistado inúmeras
vezes, acompanhando a pintora Leonor Fini em festas, naufragou em crises de
esterilidade literária, pensou em suicidar-se e entregou-se a um
relacionamento amoroso insano com um belo italiano, Decimo Christiani,
tuberculoso e prostituído, que conheceu num banho público em Roma. Pensou em
rodar um filme, Le Bagne, com o adolescente enfermo como protagonista, não
conseguindo concretizar o projeto, escreveu uma Carta Aberta a Decimo para a
revista norte-americana New Story , que nunca foi publicada. Abandonado pelo
amante, melancólico e desesperado, esboçou uma obra nunca escrita totalmente
mas muitas vezes sonhada e anunciada: Infernos (que foi publicada incompleta).
A idéia, ambiciosa, versava sobre a simbologia universal, o seu Eu e sobre a
ética da arte. Superando códigos morais e atravessando sinceramente o
"território do mal", escreveu em Infernos - Fragmentos: "Uma vida de homem
inclui alguns instantes de luz. O resto está votado ao pardacento".
Autor da impactante As criadas (1947, embora publicado em 1954 ), onde pedia
que os personagens - todos femininos - fossem interpretados por homens (houve
uma montagem brasileira memorável, com Dina Sfat num dos papéis), Genet
redescobriu o teatro na segunda metade dos anos 50 ao se enamorar do ator
Pierre Joly. Escreveu O Balcão (1956) e Os Negros (1958), entregando-se
novamente a um longo silêncio, só quebrado com breves reflexos de sua obra e
um longo poema político escrito no ano de sua morte: Le Captif Amoureux
(1986). Grande poeta, direto e explícito, o autor de Poemas (1948),
questionado por sua homossexualidade, dizia dela: "É uma estética da morte
que nega o mundo e se destina à esterilidade. Nós, as bichas, somos fadas não
do nascimento mas da morte".
de Barcelona (setembro 2001)
Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN
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