Antonio Nahud
Pequenas Histórias Sobre o Delírio Peculiar Humano
01. O
BESTIALIZADO
|
|
O seu percurso errante sofre de falta de
tempo. Nem consegue escrever. É um poeta capitalista, consumista, estressado.
As gavetas transbordam obras inacabadas. O último livro lido nem recorda. Numa
exposição de fotografias, um amigo perguntou se apreciara o Borges,
presenteado meses antes, e ele respondeu: "Surpreendente. Borges é sempre
surpreendente", pedindo desculpas para pegar um quibe na bandeja levada pelo
velho garçom no outro lado do salão. Trabalha como funcionário público no
horário matutino; à tarde, ensina num cursinho pré-vestibular e, finalizando,
vara as noites traduzindo do francês textos técnicos para uma empresa de
informática. A televisão sempre ligada, num volume altíssimo. É a sua terapia,
a companhia para afastar a solidão e afundá-lo nas sendas das sombras. Não tem
tempo para namorar ou ir à praia. Tampouco cuida das plantas no quintal, que
morrem secas. Tem pavor a samba, carnaval, malandros, bares, inquietos,
modernos e libertários. Na sua cabeça, são assanhados que sufocam a
sensibilidade e o frescor poético com rituais aberrantes. O filho adolescente
faz de conta que ele não existe, e ao chegar em casa, fumado, tranca-se no
quarto, ouvindo Cássia Eller no volume mais alto. Recusa os convites amigáveis
ligados ao prazer, só aceitando o lazer profissional. No Dia da Cultura,
quando um jovem e entusiasmado poeta gritou, "Deus salve os poetas!", não
soube se devia chorar ou sorrir, ficou sem reação, mudo, irreconhecível nos
seus propósitos. Poeta, ele? Quem garantia? Onde os desdobramentos e a
complexidade? Chegou em casa perturbado com suas vicissitudes, ligou a tevê,
tomou um café e logo em seguida, outro, e olhou-se no espelho, vendo no fundo
dos olhos, com nitidez cristalina, o velório do poeta. Rasgou as inúmeras
páginas de tradução, desligou o aparelho de imagens medíocres, apagou as
luzes, acendeu um cigarro e chorou.
de Natal (RN) RT, Coojornal, março 2002
Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN
Antonio Júnior segue a caminhada de escritores como Bruce Chatwin, François
Augiéras e Paul Bowles. Viaja por diversos países,
fotografando e escrevendo um diário de viagem. Escreve para as revistas Go
(Barcelona), Veludo (Lisboa), Simples? (SP) e é correspondente do jornal A
Tarde (Salvador, Bahia).
Direitos Reservados É proibida
a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou
impresso, sem autorização do autor.
|