01/04/2023
Ano 25 Número 1.314
ARQUIVO
ANTONIO NAHUD |
Antonio Nahud
AS PALAVRAS ÍNTIMAS
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«Amo-te,
queria ter-te agora sobre o meu peito para saber que existo. Queria que, nua e
cingindo-me entre as tuas pernas, me beijasses o peito. Depois, que me
masturbasses. E assim, somente assim, existo.» Carta de Paul Eluard para Gala
Um dia disseram-me: "as cartas envelheceram, já não são desta época ".
Não pactuo com os corações crédulos deste mugido de finitude, a comunicação
epistolar, considerada bastante antiquada, renasceu com a internet e o correio
electrônico. Contudo, o e-mail não passa de um bilhete virtual. Os textos, as
palavras, as confissões vermelho-púrpura são mais dinâmicas em cartas
tradicionais. Sob o meu hálito de cigarro e hortelã, escrevo cartas poéticas:
" O que era antes de ti a beleza para mim? ". E às vezes chegam cartas.
Tratam-se de migalhas de longe, convertidas em sentimentos vivos. O máximo do
romantismo seria colocá-las numa caixa elegante, atá-las com fita de seda e
perfumá-las com ramos de alfazema, próprio para as desesperadas cartas de
Oscar Wilde para Lord Alfred Douglas: " Não posso viver sem ti. És tão
desejável, tão maravilhoso! Os teus lábios, rubros como pétalas de rosa, foram
feitos para a música e o canto, como para os beijos.". Cartas piegas que
empurraram o escritor irlandês para a prisão, a miséria e a morte. Uma carta é
esse objecto inanimado que pouco a pouco acaba palpitando, como um tigre
devorando o peito. Na paz das casas sem televisão, é fácil ouvir vozes saindo
de envelopes convidando-nos a ouvi-las. Muitos resistem com truques, tal
Ulisses amarrado ao mastro de seu barco para não ser encantado pela melodia
das irresistíveis sereias. Um deles é deixá-las cuidadosamente num bolso de
umas calças sujas, para que sejam trituradas pela lavagem, ou ainda,
abandoná-las próximas de uma janela para que o vento as leve. São formas de
neutralizá-las. Uma carta íntima, se deixada em liberdade, é um animal
selvagem agarrado ao coração de quem a enviou, de quem a recebeu. Para
perceber a ideia, é só acompanhar a desbocada correspondência entre James
Joyce e sua mulher Nora Barnacle - nas cartas do gênio: ora virgem, ora puta.
As cartas libertinas de Nora contribuíram para o célebre monólogo de Molly
Bloom no final de "Ulisses".
Recebi recentemente uma mensagem de um
leitor amigo de Londres. Um poeta que vive por lá há anos. Leu um ensaio que
escrevi sobre o escritor norte-americano Paul Bowles. Desde então, uma vez por
outra, trocamos ideias sobre literatura; e desta vez dizendo que os meus
textos na primeira pessoa são quase cartas. Eu gosto de corresponder-me com
desconhecidos, penso nos seus perfumes, imagino os seus rabos expostos. Serão
durinhos e peludos? Macios e perfeitos como os dos irmãos negros? Falo de
literatura pensando no prazer em variados sentidos, como Hilda Hilst, e talvez
seja um problema, porque estou longe da idade dela. Os correspondentes, na sua
maioria, querem a serenidade de novelas românticas, é como se, ao escreverem,
obrigassem-nos a travestir de Peri ou Iracema. Quando se é realista, intimista
ou terrível, confundem-se, passam dias sem escrever, possivelmente crendo que
o silêncio causa sofrimento ao próximo. Não sabem que os escritores escrevem
para não morrer em vida e não contam com respostas, como tábuas de salvação.
Depois dos dias mudos, chega a sentença, naturalmente disfarçada, pensada,
dando lições existenciais, filosóficas, literárias ou até mesmo gramaticais,
sempre educadamente. Sei que o válido é o luxo da escrita. Não escrevo para
encantar ninguém, escrevo para fixar impressões já que a minha memória é
curta; e só escrevo o que sou e o que sei. Se não tenho milhares de leitores,
pouco importa, afinal escrevo em primeiro lugar para mim. E gosto imensamente
de cartas. Alguns insensatos usam-nas como alimento para lágrimas e rancores.
Outros violam o direito privado da correspondência. De onde vem o gozo dos
"espias" dos sentimentos alheios? Que sabem esses leitores da castidade ou
perversidade de cada linha? As cartas fosforescentes e trágicas entre F. Scott
e Zelda Fitzgerald são impudicamente públicas, assim como as de Anais Nin para
os seus amantes, de Dora Carrington para Lytton Strachey, de Nelson Agren para
Simone de Beauvoir (a interessante autora de " A Cerimónia do Adeus" não saiu
lá muito favorecida quando a sua correspondência com Sartre foi publicada,
revelando uma personalidade tirana e perversa).
Para os interessados
no passado, cartas em vez de serem o clarão dos fogos de artifício, tornam-se
cinzas de uma ausência lamentosa. A carta, para existir, implica vivência. Ela
só existe quando nasce de uma intensidade única. Dentro de uma caixa de
madeira de charutos cubanos, guardo cartas originais dos anos 50, 60 e 70 de
Drummond, Vinicius, Lygia Fagundes Telles, Caio Fernando Abreu, e uma vez ou
outra, vejo a caligrafia deles como uma pintura minimalista. As cartas são uma
vocação irresistível para o abismo do amor. Uma carta nasce do espanto. O
correspondente digno de seu ofício não teme a solidão da falta de respostas.
Não me interessam de todo as populares publicações de correspondências, como a
recente entre João Cabral, Bandeira e Drummond, mesmo amando os dois
primeiros. Os remetentes de epistolados publicados devem uivar na tumba quando
estranhos se atrevem a ler as suas frases comovidas. O que pensaria Kafka com
a revelação escrita da sua amada Milena a uma confidente: "Todo este mundo do
sexo, para ele, é e continua a ser misterioso. Um segredo místico, algo com
que não sabe lidar e que tende a sobrestimar com uma ingenuidade
comovedoramente pura.".
As cartas de Kafka, são perfeitas, intensas no
que dizem e no que calam. " Cartas ao Pai " é uma obra-prima, assim como o é o
notável " Alexis", a primeira novela de Yourcenar, onde um homem confessa a
sua homossexualidade à esposa através de uma carta perturbadora. Às vezes
chegam cartas - relíquias do desamor, troféus da discórdia, como a carta fatal
do filme de Mankiewicz, " Quem é o infiel?". As cartas puras são a revolta do
espírito criador, dos ausentes de escrúpulos, da inconsciente mediocridade.
Aos profanadores póstumos, aos arqueólogos da ira que sintam compaixão pelas
cartas que não são suas; que descubram a beleza da intimidade de receber uma
carta e, principalmente, escrevê-la.
Eu correspondo-me com muita
gente, alguns nunca vi o rosto, como o poeta Ulisses Góes, de Itabuna - as
suas cartas são sensíveis, enriquecedoras, nada sujeitas a costumes morais e
sociais -, e eu, eu comovo-me particularmente com as cartas da Emily Dickinson
de Porto Alegre, Célia Maria Maciel. Eu confesso publicamente minhas culpas,
correspondo-me com poetas, artistas vários, loucos, ex-amantes, solitários,
familiares, deprimidos, amigos antigos e outros recentes. Mas desejaria numa
tempestade de palavras todas as cartas que um dia foram lidas e guardadas na
memória, único papel digno em que merecem permanecer. Que queimem num incêndio
de virtudes! Ali onde a vida humana costuma exalar seus cálidos e honestos
propósitos. Amém.
Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN
Antonio Júnior segue a caminhada de escritores como Bruce Chatwin, François
Augiéras e Paul Bowles. Viaja por diversos países,
fotografando e escrevendo um diário de viagem. Escreve para as revistas Go
(Barcelona), Veludo (Lisboa), Simples? (SP) e é correspondente do jornal A
Tarde (Salvador, Bahia). Sua mais recente entrevista foi com a cantora
portuguesa Dulce Pontes.
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