01/10/2021
Ano 24 Número 1.242
ARQUIVO Antonio Nahud |
Antonio Nahud
SOAVAM VOZES, AZUIS HISTÓRIAS E ESPANTOS
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(de Lisboa)
"Ama
e faz o que quer" é o lema do apóstolo S. João. Eis-me em Lisboa com o coração
rutilando de amor e fazendo o que quero. Estou em Belém, a quinze minutos do
centro velho, no bairro peregrinado pelos turistas por se encontrar os
célebres pastéis-de-Belém, uma empada de ovos e leite, e o espetacular
Mosteiro dos Jerônimos, um monumento erguido para receber as sepulturas do rei
D. Manuel I, mas que hoje reflete a história de Portugal do último meio
milênio, principalmente a glorificação da Idade de Ouro, com as Descobertas.
Algumas ruas acima, no Restelo, pousei durante meses. Exatamente em frente a
uma praça dominada por uma igreja barroca, imponente, a de Nossa Senhora da
Memória. Foram meses de absoluta melancolia, muito vinho e uma nostalgia
redentora de viver num paraíso arquitetônico e paisagístico. Dava uns passos e
estava nos túmulos de Camões e de Pessoa ou no Jardim Botânico sem ninguém
além dos jardineiros; na Praça do Império, com a sua fonte cravejada de
brasões e os jardins de oliveiras, onde lia poemas de Marianne Moore; em
frente aos palácios de Belém e da Ajuda, na torre-fortaleza; lendo cartas de
amor nas margens do rio Tejo, de tonalidade suave de açúcar mascavo, na
desaparecida Praia das Lágrimas, por ser no séc. XV o local da despedida de
marinheiros, que iam enfrentar um destino de tempestades, doenças, terras
estrangeiras, solidão e fome; e no Centro Cultural de Belém (CCB), um moderno
prédio onde vi cantar Hannah Schygulla, Jessie Norman e Cassandra Wilson, a
atuação de Giorgio Albertazzi em "Memórias de Adriano" e as fotografias
hipnóticas do mexicano Manuel Álvarez Bravo.
Lisboa é como uma
caixinha de preciosidades que guarda sustos e resignações. É a terra do fado,
da dor, da resignação. Um labirinto de pormenores, de jogos emblemáticos. Sou
como uma das figuras de pedra do claustro dos Jerônimos, apontando o céu,
pisando a cabeça de reis e enxergando os mortos dos últimos quinhentos anos de
história. Seria capaz de fechar os olhos e ver o terremoto de 1755 que não
poupou a maior parte da cidade. Absorvendo todas as influências possíveis,
experimentando personagens diferentes, o meu eu solitário com os meus livros e
um diário inseparável, dividiu o mesmo apartamento térreo do Restelo com os
fantasmas de uma mulher e um gato. Nenhuma oração nenhum lamento conseguiam
demoli-los de sua visita notívaga. O gato saltava na cama, a velha e magra
senhora sentava junto aos meus pés e dali não se moviam. Na janela aberta para
um quintal com um limoeiro e elegantes copos-de-leite, a minha cadela Sidhi -
significa em hindu algo como "iluminada pelos deuses", creio - metia as patas
e a cara, com olhos luminosos observando os vultos ao meu lado. Era
assustador.
Sei que são coisas que não se diz, soa falso, provoca
incredulidades, estamos numa época que se dá importância à realidade que nada
esconde, quando ela própria, afinal, nada é. Vivemos sob uma lógica
globalizada, e os que vivem segundo a lógica apenas conseguem dizer o que está
certo e o que está errado e quando percebem que algo não bate certo em seus
conceitos, tentam eliminá-lo. Uma mente que apenas opere pela lógica é
perigosa, tal como é uma mente que apenas opere pelo sentimento. Tenho viajado
muito nos últimos meses. Consigo enxergar a Europa como um continente onde o
homem está certo de viver no centro do mundo, onde o passado se chama história
e a ação preferida à contemplação; é onde se pensa que a vida banalizada vale
a pena ser vivida e duas ilusões como a ciência e a política são tomadas a
sério.
Na Europa, o belo sempre foi premeditado. A beleza do Brasil
tem uma origem completamente diferente. Suas cidades são formas que, isoladas,
são sujas e de mal-gosto, encontram-se umas ao lado das outras numa vizinhança
perfeitamente improvável, que inesperadamente as faz brilhar, como uma poesia
cintilante. Deixarei de atravessar os meus olhos na triste e opressiva Lisboa
de Pessoa, o poeta de "Mensagem". Como não recordar aqui Pessoa, Mário de
Sá-Carneiro e Cesário Verde? "Nas nossas ruas ao entardecer, / Há tal
soturnidade, há tal melancolia / Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
/ Despertam um desejo absurdo de sofrer". Está em "O Sentimento de um
Ocidental". Nas ruas loucas do Bairro Alto, divertia-me com Emílio Santiago
assistindo um espetáculo com bonitos travesti heroínomanos no Finalmente.
Antes, um chá de kava-kava no O Outro Lado da Lua, uma ginginha no Portas
Largas, a música saudável do Frágil, a sordidez de As Primas, a suntuosidade
delirante do Lux.
Mesmo assim nunca fui feliz em Lisboa. Sinto uma
sensação de romantismo e ausência. É que existem alguns mistérios que
simplesmente sentimos que não conseguimos entender. Não aprecio a arte
portuguesa de uma forma em geral. Os atores atuam como ventrílocos - com
exceção da dócil expressividade de Maria de Medeiros; o cinema me provoca
enfado, inclusive João César Monteiro, Pedro Costa ou o veterano Manoel de
Oliveira nos seus momentos acertados (como "Vale Abrãao"); a música
aborrecida, desde o mito superior que é Amália Rodrigues a Tereza Salgueiro,
do Madredeus, que é como a nossa Adriana Calcanhoto, talentosa e sensível, mas
depois de três canções seguidas incomoda o ouvinte com a ladainha de
infelicidades. A literatura é o que há de melhor na criação artística
lusitana: Eça, Pessoa, Al Berto, Herbert Helder, Cardoso Pires, Saramago, Lobo
Antunes, Gabriela Llansol. A pintura não cresceu nem mesmo com o incentivo da
soberania de Paula Rego e Julião Sarmento.
Em Lisboa repete-se a
melancolia, e a repetição leva ao cansaço e ao desprezo por si próprio. É
claro que, como em qualquer outra grande cidade, as pessoas estão mais
isoladas e alienadas. O país é liderado pela depressão, que de certa forma é
controlada pela indústria farmacêutica, que fabrica comprimidos que evitam que
as pessoas se suicidem. Deve-se ir ao campo ou à praia para ouvir outras
vozes, para iludir melhor as esperanças, para lembrar menos a incompetência
dos nossos governantes. Nesse instante, movem-se as minhas rígidas palavras
dançando, despindo uma cidade, cobrindo-a de flores inquietas, como se num
abrir e fechar de pálpebras a cidade pudesse vir ao encontro de um motivo
inesperadamente vívido de compaixão, defendendo-se numa pergunta: "O que se
espera de um poeta?". Silêncio das palavras rasgadas e comovidas, responderia,
caso alguém com o impensável dentro quisesse ouvir-me..
((junho 2001)
RT,
CooJornal
Antonio Naud Jr é escritor , assessor literário
RN
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