01/12/2021
Ano 24 Número 1.250
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Antonio Nahud
INFIEL E ANÔNIMO EM TÂNGER
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"Se habitamos um clarão, este é coração da
eternidade" (René Char)
O ar está cheio de odores. Inquietantes
melodias, que mais parecem queixumes, em Tânger. Andorinhas à procura de
insetos, o labirinto de estreitas ruelas, a luz perfumando as sombras. Respiro
enfim. Os rostos corados, os sons, o mar da praia de Malabata. O fascínio
retornado nesta terceira visita ao Marrocos. Em suma, para iniciar-nos no
encanto, basta aprofundar-se no amor ou na cultura. De tanto viver remando
contra a corrente, lembro de desgostos tomando conta de todo o ser, e o
desgosto do corpo chama-se náusea. Luto contra a náusea atravessando a porta
de Bar er Raha, refrescando-me em banhos públicos, aceitando que para um
muçulmano a vida está dividida entre crentes e infiéis. Quero acreditar que as
vidas humanas são sempre maiores do que se sabe, como colinas baixas que dão
sobre uma grande baía. Quero acreditar que uma vida por mais frívola e vazia,
uma vida sempre contém, em algum canto escondido, algo que faz com que se
possa entendê-la.
Passeio pelo bairro do Kasbah, incendiado de desejo
por esta cidade que na primeira metade do século 20 foi um centro de
contrabandistas, espiões, exilados e homossexuais em férias. A terra de Paul
Bowles! Lembro do seu corpo frágil de pássaro apoiando-se no meu ombro para
dar mais alguns passos no Petit Socco, uma pequena praça ladeada de cafés e
hotéis. No Marrocos, vive o hábil Juan Goytisolo, se encontra o túmulo de
Genet na beira-mar e principalmente os mistérios do casal Bowles. É inútil
estar só, estar encerrado na liberdade. Tatear sozinho no escuro não é fácil.
É preciso forças para avançar sempre, no meio de todos, sentindo perfumes
diferentes segundo receitas secretas, no mesmo caminho pelo qual multidões de
homens, há séculos, caminham hesitantes em direção a um futuro incerto. Posso
vê-lo claramente, nenhuma certeza é oferecida a ninguém. Ela foi oferecida a
Capote, Burroughs, Ginsberg, Tennessee Williams ou Isherwood quando por aqui
passaram?
Vivo, corro o mundo, guardo mistérios e não posso e não
quero deixar de ser o que sou. Sou da raça que sempre parte, a nômade. O que
respiro se chama liberdade? Tomando chá de hortelã às 8 da manhã no Hotel
Ville de France, o mesmo em que se hospedava Gertrude Stein e sua amante Alice
B. Toklas, ignoro os enfadonhos costumes provincianos apenas com minha
existência. A liberdade do coração só se tranqüiliza diante do amor. Porque no
amor ninguém tem prazer sozinho. Minhas amizades e meus amores são físicos.
Amo a vida com paixão, carnalmente.
Caminhando na cidade moura, cheio
de associações literárias, não quero ter razão, ao contrário, quero aprender a
estar errado. Quem quer ter sempre razão se sentirá contra todos. Tenho por
exemplo Oscar Wilde, que viveu apenas sob a lei da arte como beleza e da vida
como refinamento, e depois da derrota, da cárcere, da traição, decepcionado
com seus desenganos, deixou de escrever. Miserável e doente pelas ruas de
Paris, encontrou certa vez André Gide e, diante do incômodo desse, disse: "Não
é preciso se interessar por alguém que foi fulminado".
São dias de
reflexão e leitura na terra do profeta Maomé e do domínio colonial francês
durante 44 anos. Aprendi que a reflexão e a leitura não fornecem exatamente o
esquecimento e a distração. Sendo assim, levo-me pelo desatino, dançando
sinuosamente no clube noturno Le Palais, no Hotel Tanjah Flandna. Homens de
várias idades sorriem, alguns oferecem cigarro de haxixe puro ou me tomam
masculinamente nos braços e bailam selvagemente. Eu seria capaz de lutar numa
guerra em defesa do Marrocos. Ainda ontem, numa festa nos jardins do Palácio
Mendoub, cujo dono é o editor e milionário Malcolm Forbes, onde trabalhei
carregando caixas de sons, refletores e fios intermináveis de uma equipe de
música, vi o novelista Rodrigo Reis Rosa e me deixei levar pela sedução
platônica de um casal de artistas.
Em Tânger esqueço nomes, idades,
costumes, cidades, minha própria identidade, torno-me um gato sujo sem dono,
sem raça, sem pátria. Sou possuído pelo Marrocos. Amo-o! Sei que o homem é um
animal tolo, a começar por mim. Tolo e sentimental, ouço a língua árabe
marroquina, entro em lojas de artigos de barros e outras de tapetes e killims,
fumo kish, esquecendo parte de mim mesmo em proveito de uma expressão
comunicável. Esmago a dor e alguma verdade pessoal, para caminhar em direção
ao mar, à luz e as fontes inesgotáveis dos sonhos e dos corpos, da saúde e do
riso dos homens. Imagens do mercado Grand Socco, da mesquita Sidi Bouabid com
ricos azulejos, de praias banhadas simultaneamente pelo Atlântico e pelo
Mediterrâneo, de um adolescente vendendo fósforos, do belo guia Samir - irmão
do meu jovem amigo Rachid, que disse-me: "O meu irmão mais novo cuidará de
você" - deitado na minha cama e eu sem conseguir tocá-lo. Nunca usei o
Marrocos como paraíso sexual, quero-o como demência, espiritualidade e beleza.
É que sem a beleza, o amor ou o perigo, seria quase fácil viver.
de
Tânger, Marrocos (junho 2001)
Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN
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