Antonio Nahud
LEMBRO-ME (ALÉM DO ESQUECIMENTO)
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Lembro-me que foi em noites de lua cheia. Lembro-me da terra vermelha, do pó
de argila alinhado por cima do horizonte, das casas caiadas sublinhadas a
amarelo ou azul, do calor escaldante e do silêncio alentejano. Era um silêncio
cheio de ruídos renegados, grande carros descarregando pesados equipamentos de
sons, os ramos dos eucaliptos levados ao vento, os primeiro adolescentes
empoeirados, a bizarra imponência do "Franklin Freak Show". Silêncio à beira
da morte, agonizando, dizia dentro da minha cabeça.
No dia seguinte, o
espaço do Festival do Sudoeste, o mais célebre do verão português, a 4 km da
aldeia de Zambujeira do Mar, abrigava cerca de trinta mil jovens, peregrinos
dos quatro cantos do país. Disse adeus as horas que corriam lentas e
despreocupadas caminhando pela "cidade de lona". Era um mundo paralelo,
subterrâneo. Panelas sendo lavadas, ignição nos isqueiros para mais uma ganza
(*), folhas pisadas por milhares de pés, a inevitável batucada de djambé: tam
tam tam. Um recinto com uma geografia e bairros próprios. Havia portões feitos
de ramos, havia grafittis: "Encontramos deuses no fundo de um copo de vodca".
Na entrada do camping, na Rainha dos Cachorros, ouvia-se death metal.
Pertinho, a todo volume, tocava-se o trance, um dos mais inaudíveis gêneros
sonoros da história da música. Vendedores de cachorro-quente, de bifes
fedorentos, de sorvetes. Uma trupe de malabaristas hipnotizando com bolas de
fogo. A euforia coletiva na Herdade da Casa Branca, na quinta edição do mais
sólido e famoso dos muitos festivais que invadiram Portugal, começou na sexta
coma esmagadora presença de uma voz poderosa: P J Harvey. Look bruxa moderna,
ela surgiu em palco de vestido negro justo e botas longas de salto alto. Atuou
durante 70 minutos, numa viagem pelos seus mais iversos álbuns e momentos, com
canções como "Down by the water" e "Angeline". Polly Jean Harvey é uma das
figuras de referência natural do rock feminino de 90, um rock de tons sujos e
sensibilidade autoral, se aproximando bastante da sonoridade de Patti Smith.
Na mesma noite, a multidão delirou com os Placebo e seu cenário geométrico.
Ainda assim, o que me vem à memória com mais nitidez é o rosto expressivo de
um homem belíssimo, deitado no gramado, logo após o concerto dos Divine
Comedy, no sábado. Charro (*) na mão, abanando a cabeça como um headbanger
metaleiro, eu estava em transe com o humor e o talento de Neil Hannon, o
divertido vocalista dos Divine Comedy. Ouvi-lo cantar "The Perfect Love Song"
foi inesquecível. O grupo mostrou ter vasta multidão de fiéis, as pessoas
gritavam e assobiavam depois do espetáculo, pedindo mais uma canção. Então vi
o estranho solitário e caminhei em sua direção para o poder ver mais de perto.
Ao passar, percebi que estava mais drogado do que tinha suposto. Não porque o
rosto tivesse desfigurado, era mesmo um desses rostos imaculados, ambiguamente
imunes à mediocridade destes tempos rápidos e vazios. Havia uma beleza quase
mítica, que lhe incendiava a pele. Regressei à barraca de cerveja, do outro
lado do gigantesco gramado, tirei minha garrafinha escocesa do bolso, tomei
três tragos seguidos, e abri o caderno de anotações.
As pessoas
passavam falando dos Divine Comedy. Eu precisava escrever um poema
imediatamente, que poderia ser intitulado Ganimedes. Aliás, as palavras que em
mim ressoavam não eram palavras, antes uma série de sensações psicodélicas. O
meu sangue parecia hesitar em circular. Então vi a gigantesca lua cheia e sob
ela, o "estranho", caminhando lento mas decididamente. Era alto, muito alto,
magro, e eu não tirei os olhos dele. Ele caiu, levantou-se, e eu não fiz
qualquer movimento. Sentou-se ao meu lado e pediu que eu dissesse de onde ele
me conhecia. Eu nada respondi, e queria falar com ele, disse para mim. Falar,
sem mais, fora do festival, fora desta escrita, fora do mundo. Fixei com
precisão os cabelos pesados e pretos contornando o rosto e os olhos
semi-fechados que, visto daquele ângulo, trazia a sombra de desencanto. "Não
tenho amigos. A gente normalmente é falsa comigo. Por isso, prefiro falar com
desconhecidos, contar meus segredos e ouvir o que o outro tem para dizer, pois
sei que não há necessidade de mentiras, afinal não nos veremos nunca mais",
disse-me. O som da sua voz tinha a cor do paraíso. Fumamos vários charros,
contamos com crises de risos as histórias das nossas vidas, bebemos um bocado,
caminhamos abraçados sem enxergar ninguém, bailamos na tenda de dança e, duas
horas depois do nosso encontro, poupando o meu embaraço e o dele, nos perdemos
no "Freak Show". "Eu sou de Sintra. Agora diz-me que não restará nada de mim
em sua memória, nem mesmo uma imagem". Foram suas últimas palavras. Não
contestei-as, fugindo para o aglomerado de palhaços exibindo entranhas de
pano, barbies com cabeças reptilizadas, frascos para conservar embriões de
bichinhos de pelúcia mutantes. Olhei-o de longe e ele procurava-me; havia
agonia nos seus gestos. Deixei o circo tentando guardar algumas de suas
confissões: "Sou modelo. É uma profissão de merda. Não suporto o culto à
beleza". Lembro-me de me ter dito para não ter medo da brancura da solidão. "A
solidão é melhor do que qualquer parceiro", completou. Já não tenho medo da
solidão.
Acordei com o clarão vital do sol, massacrando sem piedade os
seres que deambulavam. Comprei papéis de arroz na tenda de artesanato, tomei
um banho gélido na barragem para animar o esqueleto e escrevi sobre alguns
músicos que me impressionaram: o ugandês Geoffrey Oryema, a voz suave e
intimista de Alison Goldfrapp, os Snaker Pimps, o Dr. Frankwenstein, oconceito
revolucionário de espetáculo dos norte-americanos Flamingo Lips, juntando
música, teatro, televisão e cinema num todo coerente, e corajosa Rita Cardoso,
de uma bonita voz lembrando Adriana Calcanhoto.
Decepcionaram-me o
argelino Khaled e os veteranos e aborrecidos UB 40. Seguindo a prática do FLU
(Faz Lá UM), fiz um, acompanhando os membros da tribo metálica chegando no
fim-da-tarde. Todos diferentes e quase todos iguais. No palco dedicado a
"world music", que não entendo bem o que significa (afinal de que planeta é a
música do palco principal?), pirei com o reggae do Cidade Negra. Como
acreditar que estava vendo uma das minhas bandas favoritas no agosto
alentejano? Fui ver o péssimo "Orfeu" de Carlos Diegues para acompanhar o
trabalho (ruim) de Tony Garrido. Comprei o disco, e gosto dele. O ritual
metálico dos Sepultura, já sem o carismático vocalista Max Cavalera, era de
bom ambiente e de uma tranquilidade cheia de energia física. Derrick Green, a
nova voz potente, finalizou: "Portugal, você é fixe(*) pra caralho!".
Segui para a tenda de dança onde o dj John Carter pocava numa coreografia de
luzes e som. Lembrei do homem de olhos quase fechados que eu não havia
perguntado o nome. "Agora diz-me que não restará nada de mim em sua memória,
nem mesmo uma imagem". Eu não havia recordado-o durante o dia inteiro. A minha
memória aceitava o desvanecimento do momento mágico à medida que o encanto
caminhava para se perder nela. Senti um súbito frio nas palmas das mãos. Na
altura, a lua soberba me pareceu triste. Talvez lhe tivesse falado no nosso
jogo sobre a melancolia da lua, e ele sobre a noite seguinte, a que viria, a
última noite, separados pela multidão de rostos na semi-escuridão, sem nenhuma
imagem concreta. Porque as imagens existem como sinais de uma nova paisagem de
desejos. Os desejos que nascem da recordação, das imagens.
Senti-me
indefeso como o Lenny (Guy Pearce) do inteligente "Memento" (2000) de
Christopher Nolan. Deveria anotar sensações, fotografar pedaços de corpos,
gravar frases na pele, fazer um mapa da situação. Lembro-me da felicidade
contida, inimiga de todas as exuberâncias, quando ele passou o longo braço no
meu pescoço e seguimos conversando misturando assuntos, colocando nomes com
cidades, datas e situações improváveis. A conversação não era importante. Ele
não acreditava na simples ideia de que as imagens desse encontro inventado
representassem algum modo de sobrevivência da sua próxima existência para mim.
Eu tenho dúvidas. Mesmo com a memória pouco privilegiada, ouço o som dos
passos das imagens que passam. Imóvel no meu gesto consumado, ouço lá ao
fundo, o som da imagem. Fica ali alguns sete segundos. A lua explode em
rutilância, todos os meninos que dançam têm os olhos semi-fechados como os
dele. Todos são ele e são eu. Todos cantam o refrão: "Nem mesmo uma imagem".
São segundos de uma eternidade de quietude e paz. Olho de forma breve e direta
o fulgor dos fiéis do festival. Fecho os olhos, sem ter mais certeza da
veracidade das coisas, caminhando em sentido inverso do movimento coletivo.
(*)ganza, charro: baseado de haxixe. (*)fixe: bacana.
RT, 16/02/2021
Ano 24 - Número 1.210.
Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN
Antonio Júnior segue a caminhada de escritores como Bruce Chatwin, François
Augiéras e Paul Bowles. Viaja por diversos países, fotografando e escrevendo
um diário de viagem. Escreve para as revistas Go (Barcelona), Veludo (Lisboa),
Simples? (SP) e é correspondente do jornal A Tarde (Salvador, Bahia).
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