01/02/2025
Ano 27 - Nº 1.403





Ângelo Pignataro



 Tem gaveta a mesa do mineiro?

Ângelo Pignataro - CooJornal

Fama perversa essa de que o mineiro, de tão sovina, tinha em sua mesa gavetas onde esconder seu prato caso fosse surpreendido por uma visita, justo na hora da refeição. De onde essa má reputação? Teria surgido durante os períodos de fome que assolou esta região em fins do século XVII, início do século XVIII? Sabe-se de graves crises de abastecimento nos anos de 1698 e anteriores, no ano de 1700 e o seguinte, em 1713 e também em 1722. Épocas em que a ganância andava de braços dados com a imprevidência. Foi fome severa. Porém, dessa maneira, descobriram-se os brotos de samambaias, os ora-pro-nobis, as taiobas e outras tantas ervas nativas usadas em nossa culinária. Esta sociedade era formada, então, na maioria, de mineradores vindos de todas as regiões da colônia e do reino para se enriquecer e nem sempre estabelecer. O povo de Minas, sua índole e espírito, sua maneira de ser, estava em formação. Com a decadência do ouro e o desenvolvimento da agroindústria as coisas todas mudam.

É fácil encontrar boas referências à hospitalidade mineira nos relatos dos viajantes europeus que por aqui passaram no século XIX. Quem lê o diário de viagem de Sir Richard Francis Burton, escrito enquanto visitava a Fazenda da Jaguara em 1867, encontra o seguinte trecho: "A hospitalidade é o que mais retarda as viagens no Brasil. É o velho estilo da recepção colonial; a gente pode fazer o que quiser, pode ficar por um mês, mas não por um dia, e são desconhecidos os inospitaleiros preceitos e práticas da Europa". O fausto do ouro e do diamante escrevera cardápios copiosos e sofisticados aqui nas Minas Gerais. O Príncipe de Joinville é recebido em Ouro Preto em 1838, em recepção oficial, com nada menos que dois capados, trinta e quatro galinhas, dezoito frangos, nove patos, dois perus, seis filhotes de pombos, dois carneiros, 45 libras de presunto, 28 libras de peito de vaca e quatro arrobas de carne de vaca. Tudo isto só na lista das carnes. Para beber, 76 garrafas de Vinho de Lisboa e 35 do Porto, 14 do Feitoria e 8 do Licante, 6 Calabre, mais 18 Bordeux e 6 Madeira, 4 Malvazia, 8 Moscatel e 10 garrafas de vinho branco; champanhe superior, 4 e 6 da simples, 4 Carcavelos. E mais: cervejas, genebras, cachaça da terra e de França, restilo de cana e Lico Hazel Vasc. Não foram feitos convites, ia quem quisesse ou tivesse coragem.

John Mawe, viajando em terras mineiras entre 1809 e 1810, descreve a fartura com que foi recebido em uma fazenda próximo à Mariana e se espanta com os serviços de prata fabricados e utilizados na região de Santa Bárbara.

A mesa do mineiro é farta e muito rica. As tradições culinárias europeias, africanas e nativas se mesclaram e produziram os pratos que fazem nossa tipicidade alimentar. O hábito de receber bem quem vem de fora é uma característica formada ao longo dos tempos, caracterizando a solidariedade mineira. Um traço que, como vimos no texto de Burton, não é europeu. Talvez advenha do compartilhar característico dos índios junto a amorosidade dos africanos. Principalmente no interior onde o tempo é mais longo que nas cidades grandes e as pessoas têm o hábito de se visitarem com frequência.

Por outro lado, existem, sim, muitas gavetas na mesa do mineiro. Mas isso no jargão dos antiquários e na história do mobiliário colonial brasileiro. E, certamente, na memória de todos nós. Mesa mineira é então um móvel de madeira, tosco, com pés em cavalete ou em lira, provido de um ou dois gavetões com aldravas ou puxadores de ferro batido.

De minha parte, lembro bem dos almoços nas fazendas pelo interior a fora e nas casas nas cidades que os fazendeiros mantinham, ou para que os filhos pudessem estudar, ou manter contatos de negócio ou se relacionarem socialmente. Recordo dos almoços na fazenda do meu tio Oscar, muitas vezes com galinha d'angola só para me agradar. Na fazenda de Bebel, lá no Salobro, onde as carnes de sol eram produzidas ali mesmo, das peixadas e maxixadas na fazenda do tio Olinto no Rio Pardo com o Rio das Velhas e dos copiosos ajantarados na casa do Compadre José Romeu em Buenópolis, onde pratos de carne de frango eram preparados, no mínimo, de três maneiras diferentes, sem contar com as variações em carnes de porco e boi; e o famigerado macarrão corado no urucum e banha, enfeitado com ovos cozidos e salsa. Maravilhosos. E sempre com gente de fora, fossem seus vizinhos, compadres ou conhecidos da cidade que por ali passavam por algum motivo.

Na casa da minha avó Zaita, nestas gavetas de mesa de jantar, era onde a gente sempre encontrava os preciosos pedaços de barbante de todos os tipos, sempre enroladinhos em pequenos novelos, tocos de vela, chaves sem serventia e diversas rolhas de cortiça dentre muitas outras miuçalhas com que fabricávamos nossos brinquedos e montávamos geringonças para nossas traquinagens. Gavetas de boas lembranças e muitas saudades.


* Publicado na revista CÉU DA BOCA, em agosto de 2004.
"Céu da Boca" foi uma revista publicada em Tiradentes e pertencia ao grupo do Slow Food de Minas Gerais, do qual o autor fazia parte.


Mensagens sobre o texto podem ser endereçadas ao autor no email pignataro.angelo@gmail.com
 

Ângelo Pignataro é designer, artista plástico e um dos fundadores do Festival de Cultura e Gastronomia de Tiradentes.


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