Affonso Romano de Sant'Anna
UM ÔNIBUS COM LÍRIOS E FORMIGAS
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Naquele dia em que um
atirador anônimo acertou na cabeça cinco dos vinte pivetes que saqueavam
os passageiros de um ônibus eu estava matando formigas que devoravam os
lírios amarelos do meu jardim.
Não gosto de matar formigas. Não
gosto de matar qualquer inseto, e devo confessar que tenho salvado
vários: alguns em poças d'água, outros presos na vidraça ou perseguidos
por lagartixas policiais.
Mas naquele dia me enfureci. Os lírios
amarelos ali humildezinhos, sentadinhos no canteiro do ônibus e, de
repente, aquele batalhão de formigas vorazes atacando de todos os lados,
cortando todas as folhas como se estivessem num piquenique festivo e
trivial.
Medi rapidamente a extensão da tragédia. Já haviam
comido cinco pés de lírio na mesma "operação arrastão". Faziam como
fazem os pivetes em bandos, quando entram pelo ônibus aos magotes,
pulando sobre a roleta; enquanto alguns vigiam, outros vão limpando os
passageiros, depenando suas vítimas, que após o assalto ficam com a alma
cortada, sem documentos, sem dinheiro e a identidade pela metade.
Procurei rapidamente formicida em grãos. Pensei: farei um trabalho
limpo. Espalharei aqui e ali os grãos envenenados e as operárias do
saque morrerão no seu barraco, longe de minha vista. É uma morte indolor
(para mim), não correrá sangue. Além do mais, meu gesto é natural:
parece que estou jogando sementes, distribuindo balas no dia de São
Cosme e Damião.
Mas o formicida estava velho, inoperante como a
Justiça. Esperei que fizesse efeito, mas os pivetes passeavam sobre os
grãos da lei e da advertência, indiferentes, risonhos.
Não tive
dúvidas. Como um pistoleiro anônimo tira a sua arma e do fundo do ônibus
atira certeiramente na cabeça de cinco dos vinte pivetes que saqueiam um
ônibus, comecei a pisar o exército de formigas que saqueavam meus pés de
lírios amarelos. Ia pisando certeiramente e quase ouvindo o estalo de
seus corpos explodindo contra o chão. Tinha que escolher: os lírios
amarelos ou elas. Por que tinham que devorar logo aquelas flores? Não
havia tanta grama ou outros vegetais onde poderiam ir trabalhar sua
fome? Não poderiam ir cortar pragas em vez de lírios? Assim prestariam
um serviço à comunidade e seriam úteis em vez de predadoras.
Mas
guerra é guerra, diz o policial-jardineiro acuado no fundo do ônibus.
Ou, então, como dizia cientificamente alguém: dê-me um apoio (ou uma
arma) e moverei o universo (ou limparei a cidade de seus bandidos).
Devo confessar que matei as formigas e voltei tristemente alegre
para a minha poltrona, livros e jornais. Talvez como o pistoleiro que
chegando em casa e orgulhosamente realizado disse à mulher: hoje o dia
rendeu, matei cinco formigas num pé de lírio amarelo. E a mulher o olhou
com a admiração de quem olha um guerreiro no jardim.
O que fazer
com as formigas?
Tenho estudado muito esse assunto. Já andei
escrevendo sobre elas e breve escreverei sobre outras incríveis
características que têm. Descobri até que Darwin se interessava muito
por elas, e que a ciência que se dedica ao seu estudo se chama
mirmecologia.
Mas pergunto aos vizinhos lá na minha casa nas
montanhas: o que fazem quando as formigas atacam os pés de lírios
amarelos? As respostas não variam, falam sempre em formicida.
No
elevador de meu prédio ouço uma extensão dessa estória: - Viu só?
Acertaram na cabeça de cinco formigas que estavam devorando os lírios
amarelos dentro de um ônibus. E isto era dito com prazer de quem
comunica a vitória de um time ou como se alguém tivesse acertado, no
jogo do bicho, na cabeça.
Na banca de jornal, formigavam leitores
na calçada comentando a mesma façanha. Se espalhassem meia dúzia de
atiradores com uma lata de formicida na mão poderíamos viajar mais
tranquilos.
O presidente do sindicato das empresas de ônibus falou
como talvez falasse qualquer jardineiro a respeito de formigas "deveria
se apresentar, ser homenageado pela policia e servir como modelo, pela
demonstração de firmeza e confiança que deu aos lírios amarelos. Ele fez
aquilo em defesa do jardim, cumprido seu dever. Se tivesse tentado
prender todas as formigas, elas teriam fugido e assaltado outros ônibus.
Pelo menos são menos cinco elementos por aí para assaltar nossas
flores".
Já fui, já fomos melhores pessoas.
Já fui? Já
fomos melhores pessoas?
A história é uma dialética de flores e
formigas?
Quando, como e por que um ser humano se transforma em
predatória formiga?
Até quando teremos de andar de ônibus com uma
lata de formicida?
Essa frase é mais fácil de assimilar, mas dá
uma responsabilidade danada na gente. Já aquela outra, que me parece ser
de Novalis, é a melhor definição que encontrei para essa encruzilhada em
que estamos. Quando a li a primeira vez, pensei: entendi tudo, essa
frase agora vai me alimentar mil anos.
O que é bonito nela,
primeiro, é que resolve o dilema entre essas duas coisas aparentemente
contraditórias: o tempo e o espaço. E em segundo lugar exaure a
definição de uma mostrando-a como contrária e complementar à outra. Em
terceiro lugar nos mostra que uma coisa não existe sem a outra.
Então, quando a pessoa cai no tempo, o que ocorre é que seu espaço
aumenta, ela cresce interiormente, e ao crescer interiormente vê o mundo
com sutilezas mais enriquecedoras.
Por outro lado, se o espaço é
tempo exterior, então a vida é realmente uma viagem, viagem para dentro
e para fora.
Agora, vejam vocês onde fomos parar nessa conversa.
Não era de altas metafísicas que julgava falar quando atravessei nesta
manhã o meu terraço para lhes escrever. Simplesmente observei uma
sombra. Uma sombra das telhas sobre os canteiros e flores.
Ainda
agora, tiro os olhos desta escrita e confiro-a com o que transcorre lá
fora. A sombra cresceu alguns milímetros.
Olho o espaço de luz
que me resta e saio para viver.
(RT, agosto/2010)
Affonso Romano de Sant'Anna escritor,
cronista e jornalista Editora Rocco
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