16/07/2023
Ano 25
Número 1.326








AFFONSO ROMANO
ARQUIVO


 

Affonso Romano de Sant'Anna


 
UM ÔNIBUS COM LÍRIOS E FORMIGAS

 


Naquele dia em que um atirador anônimo acertou na cabeça cinco dos vinte pivetes que saqueavam os passageiros de um ônibus eu estava matando formigas que devoravam os lírios amarelos do meu jardim.

Não gosto de matar formigas. Não gosto de matar qualquer inseto, e devo confessar que tenho salvado vários: alguns em poças d'água, outros presos na vidraça ou perseguidos por lagartixas policiais.

Mas naquele dia me enfureci. Os lírios amarelos ali humildezinhos, sentadinhos no canteiro do ônibus e, de repente, aquele batalhão de formigas vorazes atacando de todos os lados, cortando todas as folhas como se estivessem num piquenique festivo e trivial.

Medi rapidamente a extensão da tragédia. Já haviam comido cinco pés de lírio na mesma "operação arrastão". Faziam como fazem os pivetes em bandos, quando entram pelo ônibus aos magotes, pulando sobre a roleta; enquanto alguns vigiam, outros vão limpando os passageiros, depenando suas vítimas, que após o assalto ficam com a alma cortada, sem documentos, sem dinheiro e a identidade pela metade.

Procurei rapidamente formicida em grãos. Pensei: farei um trabalho limpo. Espalharei aqui e ali os grãos envenenados e as operárias do saque morrerão no seu barraco, longe de minha vista. É uma morte indolor (para mim), não correrá sangue. Além do mais, meu gesto é natural: parece que estou jogando sementes, distribuindo balas no dia de São Cosme e Damião.

Mas o formicida estava velho, inoperante como a Justiça. Esperei que fizesse efeito, mas os pivetes passeavam sobre os grãos da lei e da advertência, indiferentes, risonhos.

Não tive dúvidas. Como um pistoleiro anônimo tira a sua arma e do fundo do ônibus atira certeiramente na cabeça de cinco dos vinte pivetes que saqueiam um ônibus, comecei a pisar o exército de formigas que saqueavam meus pés de lírios amarelos. Ia pisando certeiramente e quase ouvindo o estalo de seus corpos explodindo contra o chão. Tinha que escolher: os lírios amarelos ou elas. Por que tinham que devorar logo aquelas flores? Não havia tanta grama ou outros vegetais onde poderiam ir trabalhar sua fome? Não poderiam ir cortar pragas em vez de lírios? Assim prestariam um serviço à comunidade e seriam úteis em vez de predadoras.

Mas guerra é guerra, diz o policial-jardineiro acuado no fundo do ônibus. Ou, então, como dizia cientificamente alguém: dê-me um apoio (ou uma arma) e moverei o universo (ou limparei a cidade de seus bandidos).

Devo confessar que matei as formigas e voltei tristemente alegre para a minha poltrona, livros e jornais. Talvez como o pistoleiro que chegando em casa e orgulhosamente realizado disse à mulher: hoje o dia rendeu, matei cinco formigas num pé de lírio amarelo. E a mulher o olhou com a admiração de quem olha um guerreiro no jardim.

O que fazer com as formigas?

Tenho estudado muito esse assunto. Já andei escrevendo sobre elas e breve escreverei sobre outras incríveis características que têm. Descobri até que Darwin se interessava muito por elas, e que a ciência que se dedica ao seu estudo se chama mirmecologia.

Mas pergunto aos vizinhos lá na minha casa nas montanhas: o que fazem quando as formigas atacam os pés de lírios amarelos? As respostas não variam, falam sempre em formicida.

No elevador de meu prédio ouço uma extensão dessa estória: - Viu só? Acertaram na cabeça de cinco formigas que estavam devorando os lírios amarelos dentro de um ônibus. E isto era dito com prazer de quem comunica a vitória de um time ou como se alguém tivesse acertado, no jogo do bicho, na cabeça.

Na banca de jornal, formigavam leitores na calçada comentando a mesma façanha. Se espalhassem meia dúzia de atiradores com uma lata de formicida na mão poderíamos viajar mais tranquilos.

O presidente do sindicato das empresas de ônibus falou como talvez falasse qualquer jardineiro a respeito de formigas "deveria se apresentar, ser homenageado pela policia e servir como modelo, pela demonstração de firmeza e confiança que deu aos lírios amarelos. Ele fez aquilo em defesa do jardim, cumprido seu dever. Se tivesse tentado prender todas as formigas, elas teriam fugido e assaltado outros ônibus. Pelo menos são menos cinco elementos por aí para assaltar nossas flores".

Já fui, já fomos melhores pessoas.

Já fui? Já fomos melhores pessoas?

A história é uma dialética de flores e formigas?

Quando, como e por que um ser humano se transforma em predatória formiga?

Até quando teremos de andar de ônibus com uma lata de formicida?

Essa frase é mais fácil de assimilar, mas dá uma responsabilidade danada na gente. Já aquela outra, que me parece ser de Novalis, é a melhor definição que encontrei para essa encruzilhada em que estamos. Quando a li a primeira vez, pensei: entendi tudo, essa frase agora vai me alimentar mil anos.

O que é bonito nela, primeiro, é que resolve o dilema entre essas duas coisas aparentemente contraditórias: o tempo e o espaço. E em segundo lugar exaure a definição de uma mostrando-a como contrária e complementar à outra. Em terceiro lugar nos mostra que uma coisa não existe sem a outra.

Então, quando a pessoa cai no tempo, o que ocorre é que seu espaço aumenta, ela cresce interiormente, e ao crescer interiormente vê o mundo com sutilezas mais enriquecedoras.

Por outro lado, se o espaço é tempo exterior, então a vida é realmente uma viagem, viagem para dentro e para fora.

Agora, vejam vocês onde fomos parar nessa conversa. Não era de altas metafísicas que julgava falar quando atravessei nesta manhã o meu terraço para lhes escrever. Simplesmente observei uma sombra. Uma sombra das telhas sobre os canteiros e flores.

Ainda agora, tiro os olhos desta escrita e confiro-a com o que transcorre lá fora. A sombra cresceu alguns milímetros.

Olho o espaço de luz que me resta e saio para viver.



(RT, agosto/2010)



Affonso Romano de Sant'Anna
escritor, cronista e jornalista
Editora Rocco
Transcrição autorizada pelo autor



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