01/11/2018
Ano 22 - Número 1.099
AFFONSO ROMANO
ARQUIVO
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Affonso Romano de Sant'Anna
O
VESTIBULAR DA VIDA |
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Um enduro sem moto, um rali sem carro, uma maratona onde, ao invés
de atletas, correm paraplégicos, cegos, presidiários, grávidas e
doentes em suas macas, esta é a imagem que nos deixa este vestibular
realizado esta semana, mobilizando centenas de milhares de jovens em
todo o país.
Várias fotos mostram jovens correndo desabalados
dentro de seus jeans justos e camisetas palavrosas em direção ao
portão da universidade, como se fossem dar um salto tríplice. Como
se fossem dar um salto sem vara. Como se fossem dar um salto na
vida. Ao lado, aparecem parentes incentivando o corredor-saltador,
aparecem colegas gritando em torcida. Correi, jovens, correi, que
estreita é a porta que vos conduzirá à salvação! E ali está, como
São Pedro, um porteiro ou guarda, que vai bater a porta na cara do
retardatário, que chorará, implorará, arrancará os cabelos num
ranger de dentes, enquanto, saltitantes, os mais espertos pulam
(ocultamente) um muro e penetram o paraíso (ou inferno da múltipla
escolha).
A Telerj declarou que teve que acordar mais de 10
mil jovens pelo despertador telefônico. Carlinhos Gordo, o maior
ladrão de carros do país, estava entre os 39 presidiários que, no
Rio, fizeram, mesmo na cadeia, o exame. Mais de trinta deficientes
visuais tiveram que tatear as 51 folhas em braile. Maria Alice Nunes
teve um filho e saiu da maternidade com o recém-nascido no colo para
enfrentar o unificado. Um índio cego — o guarani José Oado, 24 anos
— disputa uma vaga em História (ou na história?). Andréa Paula
Machado, 17 anos, teve que interromper o exame escrito várias vezes,
para o prazer oral do bebê que, entre uma mamada e outra, voltava ao
colo da avó. Dois fiscais que transportavam as provas no caminho de
Petrópolis morreram num acidente. Um estudante com rubéola fez, num
posto médico, prova ao lado de outro com catapora. Todas as idades
ali estavam representadas: Márcia Cristina da Silva, 13 anos, vejam
só!, já começou a treinar para o vestibular de Medicina em 88, e
neste só achou difícil a prova de literatura. Mas lá estava também
Edgar Carvalho, 73 anos, advogado, trocando as delícias da
aposentadoria pela idéia de se tornar médico e ainda ser útil aos
outros. Por isto, discordo da jovem que o interpelou acusando-o de
estar tirando a vaga de outro. Socialmente é melhor um velho de 73
anos que qualquer dos jovens que faltaram à prova porque dormiam,
que não foram classificados porque achavam que vestibular era loto e
vivem a ociosidade daninha à custa de seus pais.
Mas, de
todos os casos, impressiona mais o de Maria Regina Gonçalves, uma
enfermeira de 38 anos. Vejam que estória mirabolante.
Lá vai
a nossa Maria Regina. Mas não vai simplesmente. Vai grávida. Vai
grávida, mas não é uma grávida amparada pelo seu marido, mas uma
grávida solteira, enfrentando o mundo com sua barriga e coragem. No
entanto, hora e meia antes do exame, em São Cristóvão, é assaltada
por três marmanjos covardes, que tomam dela os documentos, 200 mil
cruzeiros, e o pior: lhe dão uma porção de safanões, num exercício
de sadismo matinal.
Maria Regina poderia depois disto voltar
chorando para casa e ficar lamuriando o resto da vida. Fez o
contrário: foi em frente, embora, ao chegar no local, soubesse que
uma outra colega, também assaltada, desistira do exame. Maria Regina
deu um jeito, arranjou até cópia xerox de sua carteira de
identidade, fez a prova, comprometendo-se a mostrar os outros
documentos mais tarde.
Mas, de noite, teve uma hemorragia.
Pena que os ladrões não pudessem ver a cena, pois ficariam mais
felizes. O médico lhe ordena "repouso absoluto". Ela ali
"repousando", mas agoniada, porque a burocracia lhe exigia
comprovações de documentos para validar os exames. Como desgraça
pouca é bobagem, quatro dias depois morre o pai de seu namorado, daí
a uns dias ela aborta e teve que ficar mesmo internada.
E
vede agora, ó filhinhos e filhinhas do papai, que esbanjais vossos
corpinhos sem destino nas praias da irresponsabilidade! Maria Regina
foi a primeira colocada (nota 96) no concurso para Enfermagem e
Sanitarismo. Tirou primeiro lugar e seu nome não apareceu na lista.
Ainda vai ter que provar que existe. Mas já impetrou mandado de
segurança. É claro que vai ganhar.
Texto extraído do
livro “A Mulher Madura”, Editora Rocco, 1986 – Rio de Janeiro
Affonso Romano de Sant'Anna escritor,
cronista, poeta e jornalista RJ
Transcrição autorizada pelo autor.
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