"Até hoje só bati numa mulher,
mas com singular delicadeza"
Vinicius de Moraes
Um amigo ia passando pela Avenida
Atlântica quando viu um homem batendo numa mulher dentro de um carro
estacionado. Resolveu parar e chamar a polícia. Mas iam passando pelo
calçadão dois garotões atléticos que vendo o tumulto pararam também para
saber. Meu amigo então lhes explica que o sujeito estava batendo na
mulher.
— Mas a mulher não é dele?
— indagou o garotão.
—
E só porque é dele pode bater?
— diz o amigo.
— É, nessa você me
pegou, cara.
Nesta semana a OAB descobriu que em Imperatriz, no
Maranhão, nos últimos cinco anos, maridos mataram 30 mulheres. Mas o
fizeram por uma razão muito clara: não queriam pagar pensão nem
partilhar os bens na separação. Diante desta estatística da terra de
Sarney, os machos da terra de Tancredo ficam humilhados, porque eles só
matam mulher por "traição", e, mesmo assim, em menor escala.
Mas
vou lhes contar outra estória: uma amiga estava em São Paulo numa
conversa sobre espancamento de mulheres. De repente, falou-se de um
conhecido professor que havia espancado a mulher (coisa, aliás, que
acontece em várias faculdades do país). Reparem bem, estamos falando de
gente fina. Não se trata de cachaceiros na subida do morro, do sujeito
massacrado pela vida que chega em casa escorraçando as crianças, cães e
mulheres. Estamos falando de gente inteligente, formada, com anel no
dedo, que toma coquetéis com a gente e cita Marx, Hegel et caterva. Vai
daí, alguém, comentando a razão por que o professor teria batido na
mulher, sendo ele uma pessoa célebre, indaga:
— Mas, afinal, ele é ele,
e ela quem é?
Na primeira estorinha vocês viram que um acha que a
mulher é propriedade privada do marido, e por isto pode apanhar. Quer
dizer: é igual quando a gente tem um cavalo ou cão. Já na segunda
narrativa, a titulação acadêmica ou a importância hierárquica justifica
a violência sobre o mais fraco. E a mulher, do ponto de vista muscular,
é geralmente mais fraca que o homem. Por isto faz muito sentido quando
na favela ao lado ouço as mulheres que apanham gritar: "Covarde! Vai
bater num homem". E um garotão esclarecido, que estuda lutas marciais,
ao ouvir a estória do professor espancador, observou: "Eu queria ver
esse professor crescer para cima de mim".
As estorinhas como
essas são intermináveis. Lá vai outra. Uma amiga estava dando uma
entrevista à televisão e o assunto era exatamente o espancamento de
mulheres e a necessidade de se criar uma delegacia especial no Rio, como
Franco Montoro criou em São Paulo, só para atender mulheres. E lá ia
explicando o bê-á-bá da violência dos homens sobre as mulheres,
lembrando que, quando uma mulher é violentada ou espancada, nas
delegacias comuns têm que passar por vexames e cantadas, que os homens
veem a vítima como culpada, porque nossa sociedade nos convenceu de que
a mulher é sempre uma Eva pecadora. Lembrava que em alguns países, além
das delegacias para mulheres, há associações estruturadas para
esconderem as vítimas, porque sabem que se muitas delas voltarem para
casa serão até assassinadas. E foi explicando que em alguns lugares dos
Estados Unidos existe um tratamento para maridos violentos, em sessões
comuns, uma espécie de Associação de Alcoólatras Anônimos (os
Espancadores Anônimos), que se curam e se tratam em grupo, porque isto é
uma doença pessoal e social.
Mas enquanto minha amiga dava a
entrevista, os câmeras estavam indóceis. Parecia que o assunto era com
eles. E aí, não agüentaram, interromperam a entrevista e um disse:
— A
gente trabalha na rua o dia inteiro, chega em casa cansado e a comida
não está pronta, o que é que há? Ela está querendo apanhar!
E a amiga
tentou explicar:
— Então é só você que trabalhou? Ela não batalhou por
aí em dupla jornada? Imagine se toda mulher fosse bater em marido que
traz pouco ou nenhum dinheiro para casa?
Os câmeras continuaram
resmungando durante a entrevista. Não sei o que aconteceu quando eles
chegaram em casa. Mas se houvesse na cidade uma delegacia para defender
o direito das mulheres certamente pensariam duas vezes. Talvez não
chegassem em casa sobraçando flores. Mas seguramente chegariam menos
arrogantes.
Do livro "A Mulher Madura", Editora
Rocco - Rio de Janeiro