Affonso Romano de Sant'Anna
Mineiro diante do mar |
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Me lembro dessa cena: um adolescente chegando ao Rio e o irmão
lhe prevenindo:"Amanhã vou te apresentar o mar". Isto soava assim:
amanhã vou te levar ao outro lado do mundo, amanhã te ofereço a Lua.
Amanhã você já não será o mesmo homem.
E a cena continuou:
resguardado pelo irmão mais velho, que se assentou no banco do calçadão,
o adolescente, ousado e indefeso, caminha na areia para o primeiro
encontro com o mar. Ele não pisava na areia. Era um oásis a caminhar.
Ele não estava mais em Minas, mas andava num campo de tulipas na
Holanda. O mar, a primeira vez, não é um rito que deixe um homem impune.
Algo nele vai-se aprofundar.
E o irmão lá atrás, respeitoso,
era a sentinela, o sacerdote que deixa o iniciante no limiar do sagrado,
sabendo que dali para a frente o outro terá que, sozinho, enfrentar o
dragão. E o dragão lá vinha soltando pelas narinas as ondas verdes de
verão. E o pequeno cavaleiro, destemido e intimidado, tomou de uma
espada ou pedaço de pau qualquer para enfrentar a hidra que ondeava mil
cabeças, e convertendo a arma em caneta ou lápis, começou a escrever na
areia um texto que não terminará jamais. Que é assim o ato de escrever:
mais que um modo de se postar diante do mar, é uma forma de domar as
vagas do presente convertendo-o num cristal passado.
Não, não
enchi a garrafinha de água salgada para mostrar aos vizinhos tímidos
retidos nas montanhas, e fiz mal, porque muitos morreram sem jamais
terem visto o mar que eu lhes trazia. Mas levei as conchas, é verdade,
que na mesa interior marulhavam lembranças de um luminoso encontro de
amor com o mar.
Certa vez um missionário branco pregava a
negros africanos, e ao convertê-los dizendo que Cristo havia morrido por
eles há dois mil anos, ouviu do chefe da tribo a seguinte recriminação:
"Então, ele morreu há dois mil anos e só agora o senhor vem nos contar?"
É a mesma coisa com o mar, encontrá-lo asim numa tarde como numa tarde
se encontra o amor, é pensar: "Como pude viver até hoje sem esse amor,
como pude viver na ausência do mar?".
Certa vez, adolescente
ainda nas montanhas, li uma crônica onde um leitor de Goiás pedia à
cronista que lhe explicasse, enfim, o que era o mar. Fiquei perplexo.
Não sabia que o mar fosse algo que se explicasse. Nem me lembro da
descrição. Me lembro apenas da pergunta. Evidentemente eu não estava
pronto para a resposta. A resposta era o mar. E o mar eu o conheci,
quando pela primeira vez aprendi que a vida não é a arte de responder,
mas a possibilidade de perguntar.
Os cariocas vão achar
estranho, mas devo lhes revelar: carioca, com esse modo natural de ir à
praia, desvaloriza o mar. Ele vai ao mar com a sem-cerimônia que o
mineiro vai ao quintal. E o mar é mais que horta e quintal. É quando
atrás do verde-azul do instante o desejo se alucina num cardume de
flores no jardim. O mar é isso: é quando os vagalhões das noites se
arrebenteam na aurora do sim.
Ver o mar a primeira vez, eu
lhes digo, é quando Guimarães Rosa pela primeira vez, por nós, viu o
sertão. Olhar o mar, a primeira vez, foi aquele dia em que Daniel entrou
na jaula dos leões e eles lhe lamberam os pés. Ver o mar a primeira vez
é quase abarir o primeiro consultório, fazer a primeira operação. Ver o
mar a primeira vez é comprar pela primeira vez uma casa nas montanhas:
que surpresas ondearão entre a lareira e a mesa de vinhos e queijos! Ver
o mar a primeira vez é assistir ao parto do primeiro filho ou filha,
quando a mulher se abre em ondas e gemidos de amor e vida.
O
mar é o mestre da primeira vez e não pára de ondear suas lições. Nenhuma
onda é a mesma onda. Nenhum peixe o mesmo peixe. Nenhuma tarde a mesma
tarde. O mar é um morrer sucessivo e um viver permanente. Ele se
desfolha em ondas e não para de brotar. A contemplá-lo, ao mesmo tempo
sou jovem e envelheço.
O mar é recomeço.
RT,
1º de maio/2016
CooJornal nº 982
Affonso Romano de Sant'Anna escritor,
cronista e jornalista Editora Rocco
Transcrição autorizada pelo autor
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