16/05/2024
Ano 27 Número 1.367
AFFONSO ROMANO
ARQUIVO
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Affonso Romano de Sant'Anna
O MISTÉRIO DA "FLOR DE CARNE" |
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Entrei no cemitério de
Vassouras com Turíbio Santos. Estávamos ambos vivos. Vivíssimos. Íamos
até fazer um concerto de música e poesia no Mara Hotel naquela mesma
noite. Mas de dia, fomos ao cemitério.
É que nos haviam dito que
ali floresce uma flor de carne. Cemitério, carne, flor. Muito estranho.
Mas como Vassouras é uma cidade cheia de lendas e naquele cemitério tem
a fina flor da nobreza imperial, lá fomos.
O cemitério é atrás
daquela praça linda, daquele igreja no topo da colina, depois de uma
alameda de gigantescas e sombreadas árvores. Haviam nos dito que a tal
flor irrompe de uma sepultura sempre em novembro. Os mais fatalistas
dizem que ela brota exatamente no 2 de novembro, dia dos mortos. O fato
é que ela aflora na sepultura do Monsenhor Rios, só ali.
Então lá
fomos nós cemitério a dentro. Passamos por um coveiro e lhe perguntei
onde estava a flor de carne, se havia muita gente para visitá-la. Ele apontou
o local, eu lhe perguntando se estava tudo calmo no cemitério, ele
dizendo que tudo estava calmo demais.
Dizem que o Monsenhor Rios
viveu na virada do século 18 para 19 se notabilizou por dar sepultura
digna aos escravos. Esses eram sempre postos em covas rasas. Ou largados
por aí, como no Cemitério dos Pretos, que agora redescobriram aqui no
Rio, perto da Praça Quinze, no Valongo.
Acabaram de fazer um
livro sobre isto. Um horror! Escravo não merecia nem sepultura,
apodrecia a olhos vistos depois de mortos, depois de viver
miseravelmente também na vista de todos.
Pois o nosso Monsenhor
saía a cavar fundas sepulturas para esses infelizes. E vai que um dia
ele também morreu. E vai que, daí a algum tempo, nasceu na sua sepultura
essa flor que fui ver. Flor de carne. Tem cheiro, quer dizer: não odor,
fedor de carne podre. Se vocês entrarem no Google podem vê-la. Parece um
repolho. E tem cheiro não se sabe se de carne de escravos ou do
Monsenhor. Da vida morta, de morte viva?
Dizem que trouxeram
botânicos de todo o mundo para estudá-la. Todos se perguntam: por que
nasce só ali, naquela sepultura; por que nasce e renasce ali há mais de
cem anos? Seria a alma de escravos brotando do solo, agradecidas ao
Monsenhor? Vocês estão vendo que não é necessário ir aos cinemas ver
vampiros que estão na moda, para conversar com o mistério.
Disseram-me que em Java tem uma flor semelhante. Descubro que no Japão
tem uma amorphophallus titanum (olha que nome vital, fatal!) conhecida
como flor-cadáver, que é carnívora, devora insetos.
Como é que
essa flor veio da Ásia para cá? Veio no vento? Ou um pássaro ou alma
penada a trouxe?
É uma
planta pequena. Parece um coração. Ela lança uma haste de 30 ou 50
centímetros. Hoje uma cerca de ferro a protege. Fotografei-a. Olho em
torno da sepultura do Monsenhor e vejo uma série de agradecimentos de
crentes que receberam alguma graça creditada a ele. Turíbio e eu ali,
naquele sol esplendoroso contemplando o escuro mistério. Conversamos com
o coveiro. Ele convive com o mistério e é bem humorado.
Saímos do
cemitério.
Lá fora a música e a poesia nos esperava. Outros
mistérios
(RRT, 02 de dezembro/2011) CooJornal nº 533
Affonso Romano de Sant'Anna escritor,
cronista e jornalista Editora Rocco
Transcrição autorizada pelo autor
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