Affonso Romano de Sant'Anna
SIMPLESMENTE OLHANDO O MAR
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Ficar assim à
beira-mar marulhando a alma.
Um dia, fiz isto: passei duas horas
sobre as pedras do Arpoador marulhando o corpo, maravilhando a alma.
Duas horas, direis, é muito tempo. Se estivesse aplicando em ações,
quanto poderia ter ganho? Se estivesse construindo uma casa, quantos
tijolos poderia ter erguido? Se estivesse plantando sementes no campo,
quantos frutos colheria?
E, no entanto, passei duas horas à
beira-mar apenas marulhando a alma.
Do outro lado, o mundo, o
mundo urgia velocidades, buzinas, papéis nos escritórios, aflições ao
telefone e decomposições hospitalares.
Mas eu o ignorava.
Minh’alma estava ali apenas, olhando as ondas e marulhando silêncios.
Digo minh’alma, como os antigos, porque ocorreu uma fusão anímica e
sonora: eu era a pedra, eu era o mar: três coisas numa só.
Às
vezes, é necessário fazer isso. Nem todos têm coragem, é claro. Acham
que, se não estiverem apertando um parafuso, a máquina não funcionará:
que se não estiverem costurando, bordando, remendando o mundo, o mundo
ficará inacabado. No entanto, eu lhes garanto, se tirarmos os ombros, o
mundo não desabará.
É preciso muita coragem para, de repente, não
fazer nada: ficar duas horas contemplando o mar é a suprema audácia.
Sabiam já os antigos que o mar contém seres fabulosos e ingovernáveis,
que o mar é um dragão, o mar exterior, o mar interior. É preciso ter
têmpera de pedra e ficar ali ante as baforadas de suas ondas e espumas,
sem tremer, sem regatear.
Sei que isso às vezes ocorre quando a
gente está muito triste. (Não foi o caso). Quando uma melancolia
qualquer, uma sem-saída cinzenta desaba como um nevoeiro sobre a alma da
gente, aí saímos vagando, perambulando, a dar com a cabeça no vento,
arrastando invisíveis bolas de chumbo.
Não foi o caso.
Joguei ao mar duas horas de minha vida com uma tranquilidade absurda.
Quase como se eu devesse um encontro ou tivesse que restituir alguma
coisa a alguém. Restituir, não ao mar, percebo, senão a mim mesmo.
Simplesmente olhava em torno, mas não via o que eu via. Adiante, não
via um casal deitado na pedra se beijando. Mais abaixo, não via três
moças americanas guiadas por uma brasileira, conversando e olhando um ou
outro macho tropical que nos cercava. Do outro lado, não via um
homossexual, como um gamo de orelhas em pé, na campina, atento a
qualquer chamado. Não via também os barcos que no horizonte via.
Aos poucos via que me ia fundindo ou confundindo com a pedra em que me
assentava e o que o mar não era senão uma extensão de meu sangue nesse
vai-e-vem ritmado e obsessivo. Não sei se era a pedra que se humanizava
ou se era o mar que se corporificava.
Nunca fui tão crustáceo em
toda minha vida.
Sim, um mexilhão, uma ostra, um ser daqueles que
se agarram à pedra e à água e não se afogam. Não, o silêncio não me
afogava. O azul me tripulava. Eu era um peixe na pedra. Eu era um homem
na água. Eu era uma onda parada.
As seitas orientais devem ter
algum exercício de concentração por meio do qual isso ocorre. Me
disseram que, mesmo na altas neves do Himalaia, um monge, embora nu,
pode aquecer-se concentrando-se no próprio umbigo.
Possivelmente
estava no umbigo de alguma coisa. Do mundo, de mim. O fato é que estava
imensamente fora de mim, integrado no todo, e nem sei se pensava.
Simplesmente sentia, e, possivelmente, fui feliz.
Aquelas duas
horas inteiras foram as mais úteis de quantas apliquei ao nada.
Aplicar-se ao nada, sinal de humilde sabedoria.
Certa vez, li que
o homem somente entenderia o “tudo” depois que exausto e falido diante
desse “tudo”, começasse a construir o “nada”. Esta não é uma frase que
se entende assim de uma hora para outra. Por isso, quem não a entender
agora, guarde-a para o futuro, que o nada do tudo florescerá.
Ficar marulhando a alma à beira-mar maravilhada, eu lhes digo, é um
ritual, às vezes, urgente e necessário. Nenhum ganho a isto se equipara.
Voltamos para casa acrescentados. Como o marinheiro que volta com seu
barco. Como o pescador que volta com seus peixes, invisíveis, é claro,
mas que vão me alimentar.
(16 de junho/2007) RT, CooJornal no 533
Affonso Romano de Sant'Anna escritor,
cronista e jornalista Editora Rocco
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