24/04/2007
Número - 526

AFFONSO ROMANO
ARQUIVO

 

    

Affonso Romano de Sant'Anna
 

MEU ALUNO CONCRETISTA

 

Eu tive um aluno concretista.
E isto é uma experiência inesquecível. À força de ter lecionado em várias partes do mundo, já tive alunos estranhíssimos. Mas este me chamou a atenção de modo especial. Pois quando entrava na sala, se atrasado, ao invés do "bom dia, desculpe", dizia axiomático: "Sem forma revolucionária não há arte revolucionária." Os colegas ficavam impactados: era realmente um ativista da linguagem. Quando eu fazia a chamada, ao invés de "presente", retarquia: "Un coup de dés jamais n'abolirá le hasard". Os alunos impressionados com aquela "intervenção no circuito ideológico". Na verdade, já respondendo à chamada, ele fazia "arte conceitual".

Às vezes, o seminário ia rolando. Por exemplo, estudando a obra do Padre Vieira, a visão que ele tinha do Quinto Império português. Os alunos interferiam com fatos históricos, estilísticos, colocando perguntas. Mas o aluno concretista abria a boca e dizia: "As subdivisões prismáticas da idéia-Mallarmé-ícones-Peirce-make it knew-Pound-Pau-brasil-antropofagia-Cummings-Joyce, e tenho dito."

Os colegas ficavam estupefatos com a erudição. Não entendiam nada, mas achavam o outro genial.

Noutro dia, numa aula sobre Graciliano e o romance nordestino, discutindo a personagem Sinhá Vitória em Vidas Secas, ele pede a palavra e diz assertivo: "As subdivisões prismáticas da idéia-Mallarmé-Peirce-make it knew-Pound-Pau-brasil-antropofagia-Cummings-Joyce, e tenho dito."

Novo impacto. Inteligentíssimo. Os alunos mais tímidos, naturalmente humilhados. E, assim, íamos nós democraticamente nos seminários. Falava-se de Clarice Lispector e ele pedia a palavra. "As subdivisões prismáticas da idéia-Mallarmé-ícones-Peirce-make it knew-Pau-brasil-antropofagia-Cummings-Joyce, e tenho dito."

Depois de algumas semanas os alunos, e até eu mesmo, começamos a notar que as respostas estavam se tornando muito automáticas. Pois qualquer que fosse o assunto ele fazia a mesma intervenção. Fui informado que na aula de grego ele fazia a mesma coisa. Na aula de filologia idem. Me revelaram que foi visto pedindo um cafezinho no restaurante da universidade, e onde todo mundo dizia: "Por favor, um cafezinho", ele dizia: "As subdivisões prismáticas da idéia", etc. E quando tentou namorar uma colega que fazia outro curso ao invés de dizer: "Vamos curtir uma boa", "eu te amo" ou algo parecido, começou: "As subdivisões prismáticas"... Claro, a garota se espantou, o namoro não teve futuro.

Confesso que comecei a me preocupar com o fato. Pensei em ligar para sua família. Mas um dia, quando ele fez sua costumeira brilhante intervenção num seminário, resolvi entender melhor seu comportamento. Quando ele acabou o recitativo, pedi: "Tente agora dizer o que disse de outra maneira." Ele tentou, e disse: "Joyce Cummings-antropofagia-Pau-brasil-make it knew-Peirce-ícones-Mallarmé-subdivi-sões prismáticas da idéia, tenho dito."

Ótimo, meu querido, mas você apenas falou a mesma coisa ao contrário. Vamos, disse com verdadeiro amor pedagógico, tente de novo. Deve haver alguma coisa diferente, você vai sentir um prazer imenso pronunciando palavras novas, sentirá emoções fortes.

Ele concentrou-se com algum esforço e falou: "Make it knew-Peirce-ícones-Mallarmé-subdivisões prismáticas da idéia-antropofagia Cummings-Joyce e tenho dito." Tive que ponderar: não meu filho, você apenas começou no meio e juntou as partes. Tente uma vez mais.

A classe ansiosa vivia um grande momento de angústia epistemológica. Ele se concentrou. Olhou fixamente um ponto ao longe no quadro e tentou. Seu rosto foi inchando, suas bochechas se avolumando, enquanto ruídos estranhos tentavam sair de sua garganta. E nós esperando.

- Vamos, tente, estimulava eu, e a classe toda, "tenta", "tenta", "tenta". E ele lá ia inchando tenso, rangendo em suas estruturas. De repente, explodiu. Simplesmente, explodiu. O esforço tinha sido demasiado. Pasmos olhávamos no chão da sala peças, molas, parafusos que caíram de sua engrenagem.

Definitivamente, não havia sido programado para pensar diferente.


 

(24 de abril/ 2007)
CooJornal no 526


Affonso Romano de Sant'Anna
escritor, cronista e jornalista
Editora Rocco
santanna@novanet.com.br
Transcrição autorizada pelo autor


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