Affonso Romano de Sant'Anna
MEU ALUNO CONCRETISTA
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Eu tive um aluno concretista.
E isto é uma experiência inesquecível. À força de ter lecionado em várias partes
do mundo, já tive alunos estranhíssimos. Mas este me chamou a atenção de modo
especial. Pois quando entrava na sala, se atrasado, ao invés do "bom dia,
desculpe", dizia axiomático: "Sem forma revolucionária não há arte
revolucionária." Os colegas ficavam impactados: era realmente um ativista da
linguagem. Quando eu fazia a chamada, ao invés de "presente", retarquia: "Un
coup de dés jamais n'abolirá le hasard". Os alunos impressionados com aquela
"intervenção no circuito ideológico". Na verdade, já respondendo à chamada, ele
fazia "arte conceitual".
Às vezes, o seminário ia rolando. Por exemplo, estudando a obra do Padre Vieira,
a visão que ele tinha do Quinto Império português. Os alunos interferiam com
fatos históricos, estilísticos, colocando perguntas. Mas o aluno concretista
abria a boca e dizia: "As subdivisões prismáticas da
idéia-Mallarmé-ícones-Peirce-make it
knew-Pound-Pau-brasil-antropofagia-Cummings-Joyce, e tenho dito."
Os colegas ficavam estupefatos com a erudição. Não entendiam nada, mas achavam o
outro genial.
Noutro dia, numa aula sobre Graciliano e o romance nordestino, discutindo a
personagem Sinhá Vitória em Vidas Secas, ele pede a palavra e diz assertivo: "As
subdivisões prismáticas da idéia-Mallarmé-Peirce-make it
knew-Pound-Pau-brasil-antropofagia-Cummings-Joyce, e tenho dito."
Novo impacto. Inteligentíssimo. Os alunos mais tímidos, naturalmente humilhados.
E, assim, íamos nós democraticamente nos seminários. Falava-se de Clarice
Lispector e ele pedia a palavra. "As subdivisões prismáticas da
idéia-Mallarmé-ícones-Peirce-make it knew-Pau-brasil-antropofagia-Cummings-Joyce,
e tenho dito."
Depois de algumas semanas os alunos, e até eu mesmo, começamos a notar que as
respostas estavam se tornando muito automáticas. Pois qualquer que fosse o
assunto ele fazia a mesma intervenção. Fui informado que na aula de grego ele
fazia a mesma coisa. Na aula de filologia idem. Me revelaram que foi visto
pedindo um cafezinho no restaurante da universidade, e onde todo mundo dizia:
"Por favor, um cafezinho", ele dizia: "As subdivisões prismáticas da idéia",
etc. E quando tentou namorar uma colega que fazia outro curso ao invés de dizer:
"Vamos curtir uma boa", "eu te amo" ou algo parecido, começou: "As subdivisões
prismáticas"... Claro, a garota se espantou, o namoro não teve futuro.
Confesso que comecei a me preocupar com o fato. Pensei em ligar para sua
família. Mas um dia, quando ele fez sua costumeira brilhante intervenção num
seminário, resolvi entender melhor seu comportamento. Quando ele acabou o
recitativo, pedi: "Tente agora dizer o que disse de outra maneira." Ele tentou,
e disse: "Joyce Cummings-antropofagia-Pau-brasil-make it
knew-Peirce-ícones-Mallarmé-subdivi-sões prismáticas da idéia, tenho dito."
Ótimo, meu querido, mas você apenas falou a mesma coisa ao contrário. Vamos,
disse com verdadeiro amor pedagógico, tente de novo. Deve haver alguma coisa
diferente, você vai sentir um prazer imenso pronunciando palavras novas, sentirá
emoções fortes.
Ele concentrou-se com algum esforço e falou: "Make it
knew-Peirce-ícones-Mallarmé-subdivisões prismáticas da idéia-antropofagia
Cummings-Joyce e tenho dito." Tive que ponderar: não meu filho, você apenas
começou no meio e juntou as partes. Tente uma vez mais.
A classe ansiosa vivia um grande momento de angústia epistemológica. Ele se
concentrou. Olhou fixamente um ponto ao longe no quadro e tentou. Seu rosto foi
inchando, suas bochechas se avolumando, enquanto ruídos estranhos tentavam sair
de sua garganta. E nós esperando.
- Vamos, tente, estimulava eu, e a classe toda, "tenta", "tenta", "tenta". E ele
lá ia inchando tenso, rangendo em suas estruturas. De repente, explodiu.
Simplesmente, explodiu. O esforço tinha sido demasiado. Pasmos olhávamos no chão
da sala peças, molas, parafusos que caíram de sua engrenagem.
Definitivamente, não havia sido programado para pensar diferente.
(24 de abril/ 2007)
CooJornal no 526
Affonso Romano de Sant'Anna
escritor, cronista e jornalista
Editora Rocco
santanna@novanet.com.br
Transcrição autorizada pelo
autor
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