Affonso Romano de Sant'Anna
Metamorfose
amorosa
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Uma vez, li num texto de Clarice
Lispector esta frase: "Toda mãe de filha feia deveria prometer-lhe que ela seria
bonita quando a sabedoria do amor esclarecesse um homem."
Sublinhei a frase instintivamente. Isto foi há muito tempo. Agora fui lá em A
maçã no escuro procurar a frase, e lá estava ela, intacta e forte.
Recolho-a quando a questão da beleza, uma vez mais, vem habitar ostensivamente
nosso verão. É que existem vários tipos de beleza. E a mais óbvia é a que todos
vêem. Por exemplo, a beleza arrebatadora, avassaladora, que surge imperiosa e
exige logo adoração.
É assim com certas mulheres e homens. Entram numa sala e passam a ser o centro
de gravidade dos olhares. Aparecem nas telas e capas de revistas e nos
hipnotizam. É assim também não apenas com pessoas, mas com certos objetos na
vitrina e museus: ficamos medusados diante deles, em pura contemplação. É assim,
ainda, com certas músicas que, ouvidas, passam a fazer parte de nosso repertório
existencial e nos harmonizam nos desvãos do dia.
Mas a esse tipo de beleza se opõe um outro. O da beleza que se esvazia, que vai
se esmaecendo e se distanciando de si mesma até ficar feia. É como se ocorresse
uma metamorfose qualquer. E não estou falando de velhice e desgaste físico, mas
da beleza que se esgota e se exaure. Pessoas que perdem o brilho sem que se
saiba por que e em que instante exato.
O fato é que a gente olha, de repente, uma pessoa e repara que ela não apenas
não está bela, mas já não é mais bela. É como se a harmonia se
interrompesse inesperadamente. Um modo de olhar, a curva do nariz, uma expressão
de mau gosto e a beleza se esvai. Se esvai onde? Nela? Em nós? Sabe-se apenas
que o que era vidro se quebrou e o amor que tu me tinhas era pouco e se
acabou...
Diferente desses tipos um outro aparece e me intriga: o da beleza envergonhada.
A beleza acabrunhada de ser bela.
Existe? Existe.
Exemplo? Ei-lo.
Ela me confessou: quando menina era tão bonita que já não suportava mais. A todo
lugar que ia repetiam-se as louvações carinhosas. Todos que vinham visitar a
família desfilavam incontidos elogios. Ao ser apresentada, lá vinha o galanteio.
Saindo com amigas, logo se diferenciava. No baile, a mais solicitada. Enfim,
dizia ela, um porre! um saco! Parecia que as pessoas queriam tirar pedaço de
mim. Outros elogiavam de uma maneira tal como se eu tivesse que fazer alguma
coisa para merecer ser bela.
Nesse caso, a beleza passou a ser um ônus, uma cobrança, uma chateação. Daí que
ela começou a enfear sua beleza para ser comum como os outros. A tal ponto que
hoje o marido de vez em quando lhe diz: - Vê se te arruma um pouco, mulher...
Há, no entanto, uma beleza que não entra com clarins em nossa vida, nem se
estampa em silhuetas perfeitas nas páginas do dia. Não é a obra sedutora,
arrebatadora, exigindo imediatos adoradores.
Ela é percebida aos poucos. Não se constrói linearmente. Um dia você observa que
o olhar dela não é tão banal. Que o sorriso irradiou uma mensagem qualquer. Está
pronto para descobrir que a pele tem a temperatura do seu desejo. Um corpo que
parecia tão igual-a-qualquer-um, súbito, ganha uma delicada aura. A voz, que
antes não tinha qualquer traço especial, agora fica registrada na memória
através de expressões banais, mas gostosas de serem lembradas.
Você está começando a olhá-la e a pensar: se ela não é tão deslumbrante como as
outras, por que telefono, por que facilito encontros e por que seu corpo extrai
do meu surpresas e maravilhas?
Como quem concede ou entrega um prêmio, como quem deposita a alma no destino do
outro, você está pronto a se dizer: é bela, em mim, por mim, para mim. E isto
basta. Eu te inventei na tua beleza, que construímos.
Sim, a beleza (descobre-se) também se constrói. Não exatamente (ou apenas) nas
mesas de cirurgia plástica. Como as casas se constroem, como as flores, que
passam a existir, se olhadas, a beleza se constrói. De nossas carências, de
nossas premências ela se constrói, e é um imponderável arco sobre a íris de quem
ama.
É assim, meu amigo. E se isto está acontecendo com você, você há muito começou a
amá-la. E entre vocês dois está se operando mais que uma profecia de mãe, uma
metamorfose rara, que você deve curtir e prolongar.
(24 de março/ 2007)
CooJornal no 521
Affonso Romano de Sant'Anna
escritor, cronista e jornalista
Editora Rocco
santanna@novanet.com.br
Transcrição autorizada pelo
autor
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