01/08/2024
Ano 27
Número 1.377







AFFONSO ROMANO
ARQUIVO


 

Affonso Romano de Sant'Anna

 
COMO SER FELIZ NO BRASIL

 


Descobri que há várias fórmulas para ser feliz no Brasil.

Não foi uma descoberta fácil. Levou-me anos de paciente estudo e observação. Isto se deu depois de muito amor febril sob o céu anil, deixando de lado o fuzil e o cantil até chegar à compreensão total da pátria amada idolatrada salve salve. E foi minha salvação.

Até hoje, digo, até ontem, era daqueles que tinham um pensamento simplista e, direi, maniqueísta: julgava que eu estava certo e o país errado. Que pretensão, meu Deus! Nisto era igual, talvez à média nacional. Cada um, individualmente, se julga certo e impecável, mas considera o conjunto dasastrado e inviável. Ou, o que é pior ainda: achando que o país era ruim e eu bom, eu era evidentemente melhor do que o país.

A situação não só não era nada poética, mas era patética e nada dialética. E o meu problema era um antiético dilema.

Aí estava a contradição: se cada um de per si era bom, por que o conjunto era tão ruim? Esse teorema não cabia em nenhuma matemática, ou como diz um amigo, "matemágica". Como é que a soma de tantos dados individuais positivos dava um resultado negativo? Seria esta nação um caso de perversão gestaltiana? Ora, segundo essa corrente da psicologia, um conjunto não é apenas a soma de suas partes, mas a soma de suas partes mais um. Ou seja, no final, aparece um elemento que não estava à vista, mas que dá sentido ao conjunto.

De qualquer forma a questão continuava insolúvel, porque não havia explicação para que a soma fosse negativa.

Chegou o momento, contudo, em que mudei minha postura diante desse quadro. Por exemplo: estava num jantar. De repente, começavam as conversas apocalípticas perfeitamente integradas (ver livro de Umberto Eco: Apocalípticos e integrados). O tom era catastrófico: a corrupção no governo, a inflação etc. E, de repente, surge um retardatário que contava que acabara de ser assaltado na esquina.

No princípio, caía nessa armadilha e arruinava o meu jantar. Mas com o tempo desenvolvi uma técnica de legítima defesa. Então, convido queridos à minha casa ou escolho com eles um belo restaurante para passar gostosos momentos e vou deixar que se instale o baixo astral? Vou deixar que derramem sangue no meu prato, fel na minha boca e azedem o vinho da noite? Afastem de mim esse cálice.

Um dia, como aconteceu a São Paulo no caminho de Damasco, desabou sobre mim uma iluminação: "Cai na real, cara! Se o país é o que é há quinhentos anos, como acusá-lo de não ser o que não é?"

Vejam vocês, bem que os chineses diziam: o homem sábio é aquele que descobre o óbvio. E a voz continuou: "É isso aí cara! O erro é seu, tá legal? O País é de uma fidelidade canina a si mesmo, você é que está por fora."

E estava eu ainda atordoado, quando a voz se afastou dizendo uma frase ao estilo zen tropical: "Não se pode estar num mangueiral querendo comer goiaba. Nem jabuticaba. Muito menos mangaba. Quanto mais graviola e açaí. É isso aí."
Não me entendam mal. Não estou propondo a volta do lema criado no tempo de Delfim-Médici: "BRASIL, AME OU DEIXE-O". Nem vê. Já que não posso elevar o salário mínimo sem minimizar a catástrofe que isto seria para a economia nacional, já que não posso elevar o piso salarial sem pisar no calo dos patrões, quero apenas elevar o nível teórico do desprazer.

Doc Comparato me disse uma vez, numa dessas crises nacionais das quintas-feiras, que sempre que a situação piora lhe acorria essa indagação: o que estarão pensando os mineiros? E só depois disto se tranquilizava (ou não). Como mineiro, eu confio mais nos gregos. E toda vez que a situação fica de dar pena, certo de que a filosofia do vizinho é mais gorda, volto aos gregos. E lá encontro outra banal e segura orientação.

Tudo é questão de ponto de vista. Para alguns, o que existe é o real. Para outros o real não passa de puro reflexo do que pensamos sobre o real. Se você muda as ideias, muda imediatamente o real. É mais ou menos o que acontece com a criança. Ela tem que tomar aquele remédio horrível. Aí vem a mãe e diz a palavra: "É gostoso, neném, gostosinho, toma", e a criança toma convencida de que as palavras da mãe é que estão certas. "O dodói já passou, pronto, mamãe sopra e não dói mais." As palavras, como vêem, têm muita força.

Já que o leitor teve a paciente curiosidade de me acompanhar até aqui, adianto do que tratarei na próxima crônica. Chega de introdução e suspense. Para ser feliz no Brasil há três atitudes que o brasileiro pode assumir. Todas elas conduzem à felicidade, não direi cínica (não confundam), mas cívica: 1) a atitude alienada-lírica; 2) a atitude lógica-cética; 3) a atitude revolucinária-progressista.

Juntas ou separadas resolvem qualquer infelicidade.


(Revista Rio Total, CooJornal nº 273, 14-02-88)



Affonso Romano de Sant'Anna
escritor, cronista e jornalista
Editora Rocco
Transcrição autorizada pelo autor

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