Affonso Romano de Sant'Anna
LONGOS CABELOS NO MAR
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As mulheres não sabem, ou sabem?
Mas há certos gestos femininos que são uma lírica coreografia e estão
entre o esvoaçar da garça e o ondular da corça na campina.
Veja
aquela mulher na praia, por exemplo. Acabou de se levantar, ornada de
quase tudo ou nada, porque se veste apenas de sucinta tanga e seus
longos cabelos. Longos cabelos que o sábio Salomão, na Bíblia,
descreveria: os cabelos da amada são como um rebanho de cabras descendo
as encostas.
O movimento da gata em direção ao mar é
ondulantemente belo, mas não é nele que me concentro. Concentro-me, isto
sim, na gestualidade que se desencadeará quando ela mergulhar e emergir
do verde-azul, com o rosto lavado e a cabeça erguida como um golfinho ou
lisa ariranha urbana e domesticada.
Em seu íntimo balé, tão
público, joga a cabeça para trás arqueando o corpo e a cabeleireira, que
sobrenada como uma malha de algas. Recolhe em arco a cabeleira como um
cometa respingando luz e água num círculo de 180 graus na íris da manhã.
Não está acontecendo nada. Exceto que uma mulher entrou
anonimamente na água num ritual que já encantava os primeiros europeus
quando viam nossas índias tomarem até 15 banhos diários, como se sereias
fossem, como iaras, janaínas e mães d'água que são.
Há quem fale
que ficou em nosso inconsciente a imagem da moura tomando banho nas
fontes orientais. Nas ruas de minha infância as mulheres se punham na
janela penteando a interminável cabeleira à espera do marinheiro-marido.
Deve ser isto. Também já fiz análise, pago imposto, olho as nuvens e
fico seduzido toda vez que uma mulher desaba em ondas a cabeleira sobre
o mar.
Lá vem ela, ondina-ondulante, saindo das ondas, enfiando
as duas mãos abertas em dedos pela cabeleira arejando a floresta de
pelos, num cafuné agitado. E continua o ritual enquanto, meneando a
cabeça, volta para seu grupo, lona ou barraca, recolhendo o cabelo
molhado como uma cauda, que aperta, acaricia eqüestre e eqüinamente.
Toma então do pente e, cabeça inclinada para trás ou para o lado,
arpeja a sonora pauta de seus pêlos. E, de novo, para frente e para
trás, joga a cabeleira, num círculo de quase 360 graus aspergindo gotas
e talvez - areia no azul.
O que guardam as mulheres nos cabelos?
O que acariciam? O que desabrocham? Que companhia se fazem através de
seus cabelos? Quantas horas do dia, da vida, dedica uma mulher a tecer e
destecer paixões e esperas nesses fios? De manhã, o primeiro ritual,
quando se prepara para o trabalho ou estudo. Depois, quando se pinta
para as festas, o longo diálogo com o espelho. E os shampoos,
colorantes, aparas, cortes, anúncios, comparações. E os turbantes. Que
os turbantes dão aquele ar oriental, quando a mulher sai do banho,
cabeça erguida, rainha, eriçada, lisa, como aquelas atrizes de
antigamente, cara lavada, o rosto limpo, só de beleza coroada. Nesta
hora a mulher pode pedir o que quiser: um iate em Barbados, uma casa no
Mediterrâneo e um entardecer em Veneza.
Elas escondem algo nos
cabelos. Já lhes disse, fiz análise, acredito na democracia, tenho
planos de desembarcar no século XXI e continuo olhando os seus cabelos.
E não é só na praia, não. Na porta de uma sorveteria, por exemplo. Ou
então, naquela mesa de bar, onde a mulher conversa com seu parceiro. Mas
poderia ser também diante de uma vitrina.
Aí ela faz o gesto
crucial, banal, ritual. Ergue a mão, displicente, recolhe os cabelos num
ombro e começa a enrolá-los, sem saber-sabendo, fazendo (ou não) um
coque. Vai fazer isto várias vezes. Sentada num restaurante do Plaza
Mayor, em Madri; num bar de Minas, nos anos 60; no intervalo do balé; em
meio a uma prova na sala de aula, vestida ou não de azul e branco. A mão
vai recolher os cabelos e manejá-los como cauda, como laço que seduzirá
o voyeurista.
É inverno. Só para quem quer. Porque, nesses dias,
o mar tem sido generosamente azul e as mulheres continuam coreografando
gestos com seus cabelos. Sentado ali me extasio. E penso: há, sem
dúvida, um gestual carioca. Há um jeito de se ir à praia, entrar e sair
do mar que é só dos que habitam essa cidade. Onde estão os alunos de
belas-artes que não o descrevem?
Pronto, lá vai uma mulher.
Acabou de se levantar, ornada de quase tudo ou nada, porque se veste
apenas de sucinta tanga e seus longos cabelos. Felina e equina, vai em
direção ao mar. Quando ela mergulhar e emergir do verde-azul com o rosto
lavado e a cabeça erguida como Iemanjá sua cabeleira lisa ou eriçada vai
respingar de luz a íris da manhã.
(RT, CooJornal, agosto/2000)
Affonso Romano de Sant'Anna escritor,
cronista e jornalista Editora Rocco
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