Affonso Romano de Sant'Anna
A POSSIBILIDADE DO MAR |
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Aconteceu-me várias vezes e várias vezes aconteceu com várias
pessoas. Refiro-me a uma coisa decorrente da nossa relação com o mar.
Estou/estamos em casa numa manhã dessas meio cinzentas, meio
neutras, em que nada aparentemente nos convida a olhar para fora de nós.
É como se morássemos numa cidade do interior, tipo Bauru ou, então, lá
no subúrbio. O mundo nos parece cercado de quintais e montanhas, e a
parede da casa, tanto quanto pequenas tarefas domésticas, nos separam
fortemente da realidade que lá fora ondeia. Então, a gente vai ficando
por ali entre móveis, jornais, televisão, como se habitasse no cerrado.
Vai ficando encerrado. E o mar, ignorado, deixa de existir lá fora.
Deixa de existir, embora vivamos a uma ou duas quadras dele, e ele lá
continue despejando ondas sucessivas sobre a areia da praia, como a
acenar. Deixando de existir assim (pois o apagamos por pura distração),
o mundo fica reduzido. Como viver num mundo, ainda que interior, sem
mar?
Aí, por um acaso qualquer, passamos junto à praia. Seja
porque a mulher ou os filhos nos convenceram a dar uma esticada até a
areia, ou porque, saindo para almoçar fora ou visitar alguém, passamos
por ali. E deparamos com uma coisa banalmente surpreendente: percebemos
que o mar estava ali à nossa disposição, que havia uma certa
luminosidade na areia e que era no nosso apartamento que a vida estava
escura, que era nos subúrbios da alma que nada marulhava.
Posso
dar-lhe um exemplo prosaico e concreto, que comigo aconteceu várias
vezes e várias vezes aconteceu com várias pessoas, num ondear de
semelhantes sensações. Eu ainda não vivia no Rio, vinha apenas por uns
dias e sucedia hospedar-me num ou noutro apartamento de fundos ou
localizado num primeiro andar dando para a área de serviço. Poucas
coisas provocam mais a vertigem do ser e conduzem mais à depressão do
que as áreas de serviço de nossos edifícios. Sem falar do forte cheiro
de alho e cebola que exala da culinária tropical, a gente pode perder o
horizonte da vida. Acho que os espanhóis antigos, que foram
influenciados pelos árabes também antigos, sabiam disso, quer dizer, que
mesmo olhando para dentro necessitamos de um jardim e de uma fonte. Por
isso, construíam pátios interiores em suas mansões, onde, além das
flores, uma fonte sempre jorrava a frescura de sua sonoridade aquática.
O fato é que, voltado para o fundo dos edifícios, muitas vezes perdi
o mar. Acordava, ficava por ali, olhava pela janela, mas o mar que era
mar, esse eu não via, senão sombras e imagens concretas dependuradas nos
varais do mundo. Naquele tempo, não sabia ainda dos sortilégios
múltiplos da natureza. Mal podia supor que, sobre a areia, ali mais
adiante, havia uma rajada de sol ou aquela luminosidade tépida, onde
jogadores de vôlei e futebol se exibiam, cercados de roliços corpos
morenos despojadamente deitados ou em simples conversação. "Então,
estava dando praia e eu não sabia!"
Passei a desconfiar da
paisagem que as janelas não me apresentavam. Meu Deus! Como uma simples
localização de ponto de vista pode alterar tanto uma manhã e inutilizar
um dia ou uma vida! Os moradores do Jardim Botânico aprendem a não se
trair mais com isso. Os de Botafogo e Flamengo aprendem maneiras de
neutralizar a primeira paisagem que a janela lhes oferece e a decompor
as cores do dia. Porque o mar, ali adiante, é uma realidade mais
iridescente.
Sei de muita gente que veio morar no Rio não por
causa da praia real, senão da praia virtual. É um crime, mas querem
viver perto da ideia do mar, não do mar mesmo, aquele mar com sol e
iodo, e uma multidão em burburinho erótico a se exibir para lá e para
cá. Não sei se mereciam este privilégio, porque lá no interior (e eu,
como Mauro Rasi, sou do interior e conheço esse drama), há tanta gente
que gostaria, que merecia ser batizada pela ondas do mar e, no entanto,
não lhes é dado alcançar esse beneplácito da natureza. Mas,
compreensivo, admito que as pessoas também têm direito ao mar virtual.
Sei que a realidade mesma não é para todos. A literatura e a arte em
geral estão cheias de exemplos disso: criadores que aí se refugiam, como
se ficassem num quarto escuro, no fundo de um edifício, ignorando que
ali adiante está, aliciante, bravia e serena, a vida.
Durante a
semana, também experimentamos uma dessas sensações, mesmo nós, seres
heliotrópicos. Seres heliotrópicos (adianto ao leitor que não tem
obrigação de andar com um dicionário nas mãos) são como essas flores que
vivem se virando para onde o sol vai. O indivíduo heliotrópico sofre
muito se não há sol. Para onde se virar? O mar é uma direção. Volta e
meia vamos para o centro da cidade por um caminho que não passa pela
praia. É um desperdício. Ao mesmo tempo, é maneira de nos resguardarmos,
porque há notícias de pessoas que jamais conseguiram chegar a um
escritório, botar uma gravata, e que transformaram o mar e a praia na
sua oficina de vida.
Mas ocorre várias vezes comigo (e várias
vezes deve ter acontecido com várias pessoas) sair de casa de carro de
manhã para o trabalho e dar de cara com a praia e o mar e, então,
maravilhar-se com a cena na qual pernas e corpos rebrilham ao sol, e
pensar: "Por que não acordei meia hora mais cedo? Por que não vim dar
uma corrida por aqui? Amanhã o farei, juro."
O mar está ali
adiante. Para alguns, em frente. Para outros, a poucos blocos. Para
muitos, a milhares de quilômetros, inatingível.
Ao mar! Ao mar!
Enquanto é tempo.
(RT,
1º de maio/2016)
CooJornal nº 982
Affonso Romano de Sant'Anna escritor,
cronista e jornalista Editora Rocco
Transcrição autorizada pelo autor
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