01/04/2024
Ano 27
Número 1.361







AFFONSO ROMANO
ARQUIVO


 

Affonso Romano de Sant'Anna

 
HABITAR UM NOME

 


Pode-se viver dentro de um nome como se fosse uma casa com habitáveis cômodos, debruçando-se para as flores ao luar, colhendo frutos no entardecer.

Habitar um nome. É possível? Não só isso: é compulsivo. Os nomes existem para nos dar guarida, e alguns ficam acenando, chamando e prometendo mundos e fundos.

Olhe o nome daquele prédio ali: é o de uma paisagem do Mediterrâneo. Olhe o outro ao lado: tem o título de marquês. Outros têm nome de artistas famosos e lugares míticos.

Pedimos abrigo num nome como quem foge de chuvas e bombas.

Pegamos trens e aviões, subimos de carro a serra no fim de semana por causa de um nome. Um nome de lugar onde nossa alma encontra paredes e tetos.

Quando alguém desembarca em Paris, antes de pisar no aeroporto, já habitou as avenidas e monumentos do nome. Como naquele caso da escritora americana, Helena Hanff, que se apaixonou por Londres e a habitava em cartas endereçadas à livraria da 84 Charing Cross Road.

Mas estou passando pelo subúrbio e na entrada de um cortiço vejo escrito "Vila Alegria".

Paradoxo? Ironia? Ou será que atrás daquelas caliças, naquelas escadas e corredores a "alegria" vence o mofo e a pobreza?

Um dia no México, perto da fronteira americana, vi o nome de uma favela: "Pátria y Libertad''. 0 nome era a anticoisa. A inalcançável coisa. A paródia da casa. A fratura. A diferença. A cicatriz. É como na minha infância aquele bairro pobre, no entanto, com o nome de "Eldorado". Era grotesco ver operários na fila do ônibus, exaustos e abatidos, indo para o eldorado. Mas iam. Para o eldorado possível.

Não há pessoas que habitam em Praga? Lá a felicidade não é possível? Não estamos comemorando, aliás, os vinte anos da "primavera de Praga", quando se sonhou a liberdade antes da "perestroika"?

É necessário limpar os nomes das pragas e pulgões.

É necessário polir, varrer, encerar, pintar e mantê-los à altura de suas exigências.

Já vi pessoas se mudando para um nome. Chamaram uma firma autorizada, puseram toda a mobília lá dentro do caminhão e tocaram para um endereço de mais prestígio. Foram habitar um outro nome, como outros se deixam conduzir por uma marca de automóvel, como outros vestem uma griffe da moda.

Assim, pode-se amanhecer no quarto ou cama de um novo nome. Pode-se até amanhecer com um novo nome atado ao nosso nome: agora me chamo "fulana de tal', assumi o sobrenome do outro. Assim ex-escravas se fazem rainhas em castelos de terra e ar.

Isto se parece com o pedir o abrigo num nome, como se um nome fosse uma embaixada, onde a gente pula o muro e pede asilo. De igual modo, outros largam um nome "Governador Valadares" e dizem: "vou fazer a América".

Habitar um nome pode ser um exercício de amor ou ódio.

Viver um nome amado é iluminar e arejar suas letras. É reativar perfumes, gostos, sons, luminosidades na pele das letras. Alguns brilham no escuro, resistindo como diamantes, ao esquecimento. Viver dentro de um nome querido é ser mais que seu guardião ou porteiro. É ser quase-arquiteto, pois o nome se expande em cômodos derivados da planta original.

Há pessoas que se sentem confinadas em certos nomes, como numa prisão. 0 que fazer? A pessoa faz o nome ou o nome faz a pessoa? Quem habita quem? Pode-se reformar um nome? Levantar-lhe o "pé direito", fazer um puxado, uma "água furtada"?

Os nomes são lugares onde apascentamos.

Os nomes são lugares que nos conformam. E nos conformamos. Ou não. Quem não se conforma inventa, no espaço, outros nomes.

A história é uma sucessiva construção e desmonte de nomes. Um monte de nomes.

Os homens, em princípio, projetam os nomes, mas os nomes se alimentam dos homens. Sugam sua alma, cravam raízes em nossos peitos. Os nomes são também plantas carnívoras. Ou, então, insetos e carrapatos. Os nomes podem virar vampiros chupando nossa seiva, Já vi um nome, num canto, devorando um homem. Roía-o intermitentemente. Era um nome que possuía um homem.

Há pessoas desabrigadas de nomes, ao relento. Outros se desobrigaram de certos nomes, como quem deixa um fardo

0 nome obriga. 0 nome abriga.

0 nome, dizia o filósofo, é realmente a casa do homem.



(RT, 1º de maio/2016)
CooJornal nº 982


Affonso Romano de Sant'Anna
escritor, cronista e jornalista
Editora Rocco
Transcrição autorizada pelo autor



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