Affonso Romano de Sant'Anna
HABITAR UM NOME |
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Pode-se viver dentro de um nome como se fosse uma casa com
habitáveis cômodos, debruçando-se para as flores ao luar, colhendo
frutos no entardecer.
Habitar um nome. É possível? Não só isso: é
compulsivo. Os nomes existem para nos dar guarida, e alguns ficam
acenando, chamando e prometendo mundos e fundos.
Olhe o nome daquele prédio ali: é o de uma paisagem do Mediterrâneo.
Olhe o outro ao lado: tem o título de marquês. Outros têm nome de
artistas famosos e lugares míticos.
Pedimos abrigo num nome como
quem foge de chuvas e bombas.
Pegamos trens e aviões, subimos de
carro a serra no fim de semana por causa de um nome. Um nome de lugar
onde nossa alma encontra paredes e tetos.
Quando alguém
desembarca em Paris, antes de pisar no aeroporto, já habitou as avenidas
e monumentos do nome. Como naquele caso da escritora americana, Helena
Hanff, que se apaixonou por Londres e a habitava em cartas endereçadas à
livraria da 84 Charing Cross Road.
Mas estou passando pelo
subúrbio e na entrada de um cortiço vejo escrito "Vila Alegria".
Paradoxo? Ironia? Ou será que atrás daquelas caliças, naquelas escadas e
corredores a "alegria" vence o mofo e a pobreza?
Um dia no
México, perto da fronteira americana, vi o nome de uma favela: "Pátria y
Libertad''. 0 nome era a anticoisa. A inalcançável coisa. A paródia da
casa. A fratura. A diferença. A cicatriz. É como na minha infância
aquele bairro pobre, no entanto, com o nome de "Eldorado". Era grotesco
ver operários na fila do ônibus, exaustos e abatidos, indo para o
eldorado. Mas iam. Para o eldorado possível.
Não há pessoas
que habitam em Praga? Lá a felicidade não é possível? Não estamos
comemorando, aliás, os vinte anos da "primavera de Praga", quando se
sonhou a liberdade antes da "perestroika"?
É necessário limpar os
nomes das pragas e pulgões.
É necessário polir, varrer, encerar,
pintar e mantê-los à altura de suas exigências.
Já vi pessoas se
mudando para um nome. Chamaram uma firma autorizada, puseram toda a
mobília lá dentro do caminhão e tocaram para um endereço de mais
prestígio. Foram habitar um outro nome, como outros se deixam conduzir
por uma marca de automóvel, como outros vestem uma griffe da moda.
Assim, pode-se amanhecer no quarto ou cama de um novo nome. Pode-se
até amanhecer com um novo nome atado ao nosso nome: agora me chamo
"fulana de tal', assumi o sobrenome do outro. Assim ex-escravas se fazem
rainhas em castelos de terra e ar.
Isto se parece com o pedir o
abrigo num nome, como se um nome fosse uma embaixada, onde a gente pula
o muro e pede asilo. De igual modo, outros largam um nome "Governador
Valadares" e dizem: "vou fazer a América".
Habitar um nome
pode ser um exercício de amor ou ódio.
Viver um nome amado é
iluminar e arejar suas letras. É reativar perfumes, gostos, sons,
luminosidades na pele das letras. Alguns brilham no escuro, resistindo
como diamantes, ao esquecimento. Viver dentro de um nome querido é ser
mais que seu guardião ou porteiro. É ser quase-arquiteto, pois o nome se
expande em cômodos derivados da planta original.
Há pessoas que
se sentem confinadas em certos nomes, como numa prisão. 0 que fazer? A
pessoa faz o nome ou o nome faz a pessoa? Quem habita quem? Pode-se
reformar um nome? Levantar-lhe o "pé direito", fazer um puxado, uma
"água furtada"?
Os nomes são lugares onde apascentamos.
Os
nomes são lugares que nos conformam. E nos conformamos. Ou não. Quem não
se conforma inventa, no espaço, outros nomes.
A história é uma
sucessiva construção e desmonte de nomes. Um monte de nomes.
Os
homens, em princípio, projetam os nomes, mas os nomes se alimentam dos
homens. Sugam sua alma, cravam raízes em nossos peitos. Os nomes são
também plantas carnívoras. Ou, então, insetos e carrapatos. Os nomes
podem virar vampiros chupando nossa seiva, Já vi um nome, num canto,
devorando um homem. Roía-o intermitentemente. Era um nome que possuía um
homem.
Há pessoas desabrigadas de nomes, ao relento. Outros se
desobrigaram de certos nomes, como quem deixa um fardo
0 nome
obriga. 0 nome abriga.
0 nome, dizia o filósofo, é realmente a
casa do homem.
(RT,
1º de maio/2016)
CooJornal nº 982
Affonso Romano de Sant'Anna escritor,
cronista e jornalista Editora Rocco
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