16/10/2022
Ano 25
Número 1.292








AFFONSO ROMANO
ARQUIVO


 

Affonso Romano de Sant'Anna


 
UM CEGO NO ARPOADOR

 



Eu vi um cego sentado num banco de cimento no Arpoador. E era uma manhã de sol suavemente luminosa, que ele absorvia com calma. Sentado, de óculos escuros, ele tinha uma bengala onde a mão se apoiava, enquanto seu rosto apontava na direção do mar, para um lugar qualquer entre as ilhas Cagarras e a avenida Niemeyer. Vendo-o, fiz o que qualquer um banalmente faria: pus-me a imaginar como ele intuiria o que eu via.

Aparentemente ele era a minha carência e eu o seu excesso de visão. De certo modo, ele estava calmo, quase impassível. Tinha algo de estátua. Fico pensando se a agitação, a inquietação não são mais próprias dos que enxergam e por enxergarem se perturbam de fora para dentro e de dentro para fora. Engano meu, é claro: somos apenas a agitação, a perturbação visível.

Pensei em aproximar-me, sentar-me ao seu lado, puxar conversa. Mas algo me dizia que não devia tumultuar a aura de silêncio onde ele se instalara. Aquele momento era dele e ele não parecia ter necessidade de nenhuma complementação, muito menos de alguém que, por ter vista, viesse, como voyeur, espionar sentimentos de outrem.

José Saramago escreveu aquele romance Ensaio sobre a cegueira, em que mostra uma visão penumbrosa, terrível, de um mundo onde as pessoas vão ficando progressivamente cegas. Disse-me ele que não conhecia aquele conto de H.G. Wells sobre um indivíduo que chega a um vale onde habitava uma comunidade de cegos. Cegos, porém vivendo em harmonia, tendo ajustado o mundo e todos os seus objetos às suas necessidades. O visitante, com a arrogância de quem vê, acabava atrapalhando tudo, deixando coisas fora do lugar, rompendo com o organizado código da comunidade. Para eles, a visão era um supérfluo. E supérfluo sentiu-se o recém-chegado, que tendo se apaixonado por uma linda jovem cega, com ela queria viver para sempre. Mas os habitantes do lugar o achavam estranho, julgavam que aqueles dois órgãos em seu rosto prejudicavam seu relacionamento com todos. Ele só poderia se casar se apagasse seus olhos. A história continua. Não posso contá-la toda sem estropiá-la. Por isso a termino aqui, dizendo que, ao final, ele parte para além das montanhas, vendo o mundo, embora cego de amor.

Há algum tempo escrevi uma crônica sobre o Arpoador intitulada Duas horas olhando o mar. Aí vagava, ondulava sentimentos, deixando-os ir e vir, e me dava conta de que essas duas horas fazendo nada diante do mar eram mais produtivas do que as horas que os executivos passam ansiosos atrás de suas mesas e seus telefones.

No texto eu olhava para fora e olhava para dentro. O fora servia como paisagem do que eu buscava dentro. E a alma marulhava maravilhando-se.

Agora, no entanto, fico rodeando o meu cego, ali, no Arpoador. Começo pretenciosamente a ver por ele. Num banco ao lado, dois senhores de cabelos brancos e alguma barriga, com aquele chapeuzinho para quebrar o sol, conversam suas aposentadorias.

Um belo casal de namorados, ele moreno de calção vermelho, ela de short com florzinhas, um boné para proteger-se do sol, ambos fazem alongamento depois de terem vindo correndo de Ipanema para cá.

Um cão escuro salta de cá para lá na praia do Diabo tentando jogar a bola de frescobol que dois rapazes e uma loura moça jogam.

O cego está na mesma posição de há 15 minutos. Seu movimento é visivelmente interior.

Algumas pessoas sobem aquelas pedras de onde banhistas se lançam em mergulho, outros caminham na direção das barras de ginástica. Os vendedores de bebidas e sanduíches na calçada conversam com guardas e salva-vidas.

Uma vez Paulo Mendes Campos escreveu uma crônica intitulada O cego de Ipanema. Resolvo relê-la. Meu Deus! Deve ter quase uns quarenta anos que ele escreveu isso. Confiro o cego de Ipanema com o do Arpoador. O cego dele e o meu cego. A visão poética de Paulinho e a minha crônica vista cansada. O cego dele acabava bebendo pelos bares e encostando-se nas paredes. O meu continua ali face ao mar. Mas havia uma coisa em comum: "A poesia servia-se dele para manifestar-se aos que passavam." Ou, como agudamente anotou ele: "A solidão de um cego rodeava a cena e a comentava."

Observo ao lado, sentada num outro banco, de costas para o cego e para o mundo, uma mulher. Tem o ar pesado, olhar distante, perdidamente infeliz. Olha para dentro, para o seu passado, para a briga com o marido ou o amante, para sua vida destruída ferozmente.

Ah, Arpoador! Quantos lamentos e destroços de vida não vieram cegamente ter em suas areias! Quantos não vieram aqui tateando soluções para amores, lares, negócios perdidos, e ficaram olhando o horizonte sem nada ver!

Há várias formas de se estar cego no Arpoador.

Ver não significa compreender. É muitas vezes apenas a visão de enigma.




Affonso Romano de Sant'Anna
escritor, cronista e jornalista
Editora Rocco
Transcrição autorizada pelo autor



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