Affonso Romano de Sant'Anna
UM CEGO NO ARPOADOR
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Eu vi um cego sentado num banco
de cimento no Arpoador. E era uma manhã de sol suavemente luminosa, que
ele absorvia com calma. Sentado, de óculos escuros, ele tinha uma
bengala onde a mão se apoiava, enquanto seu rosto apontava na direção do
mar, para um lugar qualquer entre as ilhas Cagarras e a avenida
Niemeyer. Vendo-o, fiz o que qualquer um banalmente faria: pus-me a
imaginar como ele intuiria o que eu via.
Aparentemente ele era a
minha carência e eu o seu excesso de visão. De certo modo, ele estava
calmo, quase impassível. Tinha algo de estátua. Fico pensando se a
agitação, a inquietação não são mais próprias dos que enxergam e por
enxergarem se perturbam de fora para dentro e de dentro para fora.
Engano meu, é claro: somos apenas a agitação, a perturbação visível.
Pensei em aproximar-me, sentar-me ao seu lado, puxar conversa. Mas
algo me dizia que não devia tumultuar a aura de silêncio onde ele se
instalara. Aquele momento era dele e ele não parecia ter necessidade de
nenhuma complementação, muito menos de alguém que, por ter vista,
viesse, como voyeur, espionar sentimentos de outrem.
José
Saramago escreveu aquele romance Ensaio sobre a cegueira, em que mostra
uma visão penumbrosa, terrível, de um mundo onde as pessoas vão ficando
progressivamente cegas. Disse-me ele que não conhecia aquele conto de
H.G. Wells sobre um indivíduo que chega a um vale onde habitava uma
comunidade de cegos. Cegos, porém vivendo em harmonia, tendo ajustado o
mundo e todos os seus objetos às suas necessidades. O visitante, com a
arrogância de quem vê, acabava atrapalhando tudo, deixando coisas fora
do lugar, rompendo com o organizado código da comunidade. Para eles, a
visão era um supérfluo. E supérfluo sentiu-se o recém-chegado, que tendo
se apaixonado por uma linda jovem cega, com ela queria viver para
sempre. Mas os habitantes do lugar o achavam estranho, julgavam que
aqueles dois órgãos em seu rosto prejudicavam seu relacionamento com
todos. Ele só poderia se casar se apagasse seus olhos. A história
continua. Não posso contá-la toda sem estropiá-la. Por isso a termino
aqui, dizendo que, ao final, ele parte para além das montanhas, vendo o
mundo, embora cego de amor.
Há algum tempo escrevi uma crônica
sobre o Arpoador intitulada Duas horas olhando o mar. Aí vagava,
ondulava sentimentos, deixando-os ir e vir, e me dava conta de que essas
duas horas fazendo nada diante do mar eram mais produtivas do que as
horas que os executivos passam ansiosos atrás de suas mesas e seus
telefones.
No texto eu olhava para fora e olhava para dentro. O
fora servia como paisagem do que eu buscava dentro. E a alma marulhava
maravilhando-se.
Agora, no entanto, fico rodeando o meu cego,
ali, no Arpoador. Começo pretenciosamente a ver por ele. Num banco ao
lado, dois senhores de cabelos brancos e alguma barriga, com aquele
chapeuzinho para quebrar o sol, conversam suas aposentadorias.
Um
belo casal de namorados, ele moreno de calção vermelho, ela de short com
florzinhas, um boné para proteger-se do sol, ambos fazem alongamento
depois de terem vindo correndo de Ipanema para cá.
Um cão escuro
salta de cá para lá na praia do Diabo tentando jogar a bola de frescobol
que dois rapazes e uma loura moça jogam.
O cego está na mesma
posição de há 15 minutos. Seu movimento é visivelmente interior.
Algumas pessoas sobem aquelas pedras de onde banhistas se lançam em
mergulho, outros caminham na direção das barras de ginástica. Os
vendedores de bebidas e sanduíches na calçada conversam com guardas e
salva-vidas.
Uma vez Paulo Mendes Campos escreveu uma crônica
intitulada O cego de Ipanema. Resolvo relê-la. Meu Deus! Deve ter
quase uns quarenta anos que ele escreveu isso. Confiro o cego de Ipanema
com o do Arpoador. O cego dele e o meu cego. A visão poética de Paulinho
e a minha crônica vista cansada. O cego dele acabava bebendo pelos bares
e encostando-se nas paredes. O meu continua ali face ao mar. Mas havia
uma coisa em comum: "A poesia servia-se dele para manifestar-se aos que
passavam." Ou, como agudamente anotou ele: "A solidão de um cego rodeava
a cena e a comentava."
Observo ao lado, sentada num outro banco,
de costas para o cego e para o mundo, uma mulher. Tem o ar pesado, olhar
distante, perdidamente infeliz. Olha para dentro, para o seu passado,
para a briga com o marido ou o amante, para sua vida destruída
ferozmente.
Ah, Arpoador! Quantos lamentos e destroços de vida
não vieram cegamente ter em suas areias! Quantos não vieram aqui
tateando soluções para amores, lares, negócios perdidos, e ficaram
olhando o horizonte sem nada ver!
Há várias formas de se estar
cego no Arpoador.
Ver não significa compreender. É muitas vezes
apenas a visão de enigma.
Affonso Romano de Sant'Anna escritor,
cronista e jornalista Editora Rocco
Transcrição autorizada pelo autor
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