Affonso Romano de Sant'Anna
DELICADAS, AS AMIZADES |
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"Pode-se dizer tudo o que se pensa a um amigo?"
"Quanto
de verdade suporta um amigo?"
"Aliás, o que é a verdade?", já
indagava Pilatos antes de crucificar o outro.
"Como combinar,
articular, fazer coabitar a verdade nossa com a verdade do amigo?"
São muito delicados os amigos. Ou se quiserem, as amizades. São
delicadíssimas. E é por isso que convém aceitar que cada amizade tem
suas fragilidades.
Bom, se o anel que tu me deste era vidro e se
quebrou, então, melhor seria que de diamante fosse. Este,
inquebrantável. Mas amizade, convenhamos, é coisa humanamente frágil. E
a gente pensa que ela está aí para sempre. Mas não tem a durabilidade
centenária das sequoias, que ficam se alongando e nos ofertando sombra
acima de tudo. Às vezes, as amizades são essas orquídeas, carentes de um
tronco alheio onde se alimentar e florescer.
A gente pensa que
amizade é coisa só de seres humanos. Não é. Os animais curtem amizades;
alguns, o amor, e outros chegam à paixão extrema por seus donos. E, no
entanto, amigos, alguns cães se mordem, quase se arrancam as orelhas num
ou noutro embate, às vezes por uma cadela no cio, às vezes por nada.
Pode-se perder uma amizade por excesso de zelo, como se ao esfregar
demais o tecido o rompêssemos. Cuidado, portanto, com o excesso, às
vezes excessivo. Claro, também se perde amigo pela escassez de socorro
ou de sinalizações afetivas. Também pela fala mal desferida. Ou mal
ouvida. A gente fala ou escreve uma coisa, o outro ouve outra coisa. Se
não der para desentortar a frase ou o ouvido alheio, a amizade fica
torta.
Diz o apóstolo Paulo que o amor tudo suporta, tudo espera,
tudo perdoa.
- Será assim a amizade?
Até hoje não ficou
muito clara a diferença entre amor & amizade. Mesmo porque muito amor
termina se metamorfoseando sem amizade; uma amizade pode virar amor, e
podemos inimizar a quem amamos e nos esforçamos por ser amigo de quem
nos despreza. De resto, para matizar ainda mais as coisas, os franceses
costumam falar de "amizade amorosa", algo parecido com que aqui há
tempos se chamou de "amizade colorida".
Mas o que fazer quando
algo nos incomoda no outro e a gente sente que, se não falar, a amizade
vai começar a ratear?
Não há amizade assim solta no ar. Cada
amizade tem sua usança e sua pertinência.
Deveríamos então criar
um manual, algo assim como "Amizade, modo de usar?". Ah, sim! mas isso
já existe, está, lá naquele best-seller Como fazer amigos e influenciar
pessoas.
- Está?
Drummond tinha razão, uma triste razão, é
verdade, ao dizer que as pessoas deveriam manter entre si a mesma
relação que entre si mantêm a ilha e o continente, um certo
distanciamento e uma não muito estouvada confraternização.
Mas aí
a amizade vira algo pouco tropical, e como Thomas Merton dizia que
nenhum homem é uma ilha, o que fazer com os que não têm a fleuma
mineiro-britânica e não suportam viver num frio ou morno relacionamento?
Há pilotos que pousam pesados Jumbos com uma suavidade angelical, e
por isso merecem aplausos.
Há médicos que fazem incisões
profundas para manter o outro vivo.
Como dizer o que se deve
dizer sem sangue ou náusea?
Um dia um ex-amigo me disse:
"No princípio tentei te imitar, depois resolvi te destruir."
Tive
de me proteger.
Quem, como José Martí, dirá que "cultivo â rosa
branca em junho e em janeiro para o amigo sincero que me dá sua mão
franca, e para o cruel que me arranca o coração com que vivo, nem cardo
ou urtiga cultivo, cultivo a rosa branca"!?
Delicadas, as
amizades. Uns porque se aproximando do poder esquecem os que no poder
não estão. Neste caso não se pode nada. Outros porque viajam de formas
várias e absolutamente impenetráveis ao redor do próprio umbigo.
Retornarão algum dia?
Nesse caso, como dizia Neruda, os de então
já não seremos os rnesmos.
Há vocacionados para amizade. Têm um
dom natural. Árvores copadas onde se reúne o rebanho. Quando você vê,
está todo mundo ali ouvindo, curtindo ou simplesmente estando.
Qual o grau de resistência de uma amizade?
De um metal podemos
dizer: derrete-se a tal ou qual temperatura.
São delicadas, as
amizades. E mesmo as mais sólidas às vezes se desmancham no ar.
(Revista Rio Total, 17 de março/ 2007) CooJornal nº 520
Affonso Romano de Sant'Anna escritor,
cronista e jornalista Editora Rocco
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