Affonso Romano de Sant'Anna
Cresce a sombra no terraço |
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Atravesso o meu terraço e
percebo que a sombra cobre metade das flores e canteiros. O verão vai
acabar. Essa sombra irá se prolongando aos poucos e haverá um momento
será o inverno, quando o sol deixará de iluminar meu espaço. Dou-me
conta da passagem do tempo por este detalhe. Todos os anos percebo que a
sombra avança e que o verão vai extinguir. O verão é o instante de
esplendor fulminante. E neste país e nesta cidade o sol coloca a alma e
o corpo de todos em atordoante cio. Mas a sombra avança sobre o
terraço e sobre a vida dizendo simplesmente que o tempo existe. A sombra
me dá notícia do tempo, como a noite me dá notícia da morte. A
descoberta do tempo é tarefa imprescindível. Diria, tautologicamente,
que já descobri o tempo há algum tempo. Essa sombra apenas me manda um
novo recado. Cada um, acredito, deve ter o seu relógio solar, interno
e externo. E por aí vai verificando como, ao correr do ano, a luz vai
variando. O marinheiro, o agricultor ou o velho de pijama na cadeira
contemplando a paisagem conferem, de formas diferentes, a luminosidade
que se vai. A descoberta do tempo tem algo de parto. É quando o
indivíduo nasce outra vez. Isto pode soar estranho, mas quem já renasceu
no tempo sabe do que estou falando. Quem olhar uma flor ou fruto
brotando de um tronco ou galho entenderá tudo. As pessoas descobrem o
tempo em tempos diversos. Algumas não o descobrem jamais. Vivem sempre
no espaço. E viver apenas no espaço é diverso de viver no tempo.
Explico-me, porque essas duas categorias são simplesmente
complicadíssimas. Mas é fácil esquematizar o que estou insinuando. O
espaço seria uma linha horizontal; o tempo, uma vertical. O espaço
pressupõe uma atividade física, um deslocamento, é coisa palpável,
visível, pode-se medir. Há muita gente que vive na dimensão do espaço
apenas. Desenvolve a vida como se ela fosse uma interminável peripécia
física. Vive agitada daqui para ali, de cidade em cidade, de corpo em
corpo, acionando máquinas e ocupando lugares como se isso fosse forma de
agarrar o tempo. O jovem vive sobretudo na dimensão do espaço. É lá
pelos trinta anos, ao notar uma nesga de sombra no terraço, que começa a
se habilitar para o tempo. Às vezes, a descoberta do tempo se dá de
supetão. A pessoa vem distraída na vida, jogando, dançando, exibindo-se
ludicamente, e um simples incidente a joga numa realidade
interna-externa que a deixa abismada. Pode isso ocorrer também
através de um trauma qualquer. Isso é mau. Bom seria se acontecesse mais
naturalmente. Mas nem todas as histórias são iguais. E algumas pessoas
jamais descobririam o tempo se não fossem lançados abruptamente nele.
Uma vez li uma frase que dizia assim: "Tempo é espaço interior, espaço é
tempo exterior." Cheguei a essa frase depois de ter passado por outras,
que são estações obrigatórias para todos aqueles que tomam esse trem. Já
havia parado na frase de Santo Agostinho de que o passado, o presente e
o futuro não existem assim separados, que o que há mesmo é o presente do
passado, o presente do presente e o futuro do presente. Essa frase é
mais fácil de assimilar, mas dá uma responsabilidade danada na gente. Já
aquela outra, que me parece ser de Novalis, é a melhor definição que
encontrei para essa encruzilhada em que estamos. Quando a li a primeira
vez, pensei: entendi tudo, essa frase agora vai me alimentar mil anos.
O que é bonito nela, primeiro, é que resolve o dilema entre essas duas
coisas aparentemente contraditórias: o tempo e o espaço. E em segundo
lugar exaure a definição de uma mostrando-a como contrária e
complementar à outra. Em terceiro lugar nos mostra que uma coisa não
existe sem a outra. Então, quando a pessoa cai no tempo, o que ocorre
é que seu espaço aumenta, ela cresce interiormente, e ao crescer
interiormente vê o mundo com sutilezas mais enriquecedoras. Por outro
lado, se o espaço é tempo exterior, então a vida é realmente uma viagem,
viagem para dentro e para fora. Agora, vejam vocês onde fomos parar
nessa conversa. Não era de altas metafísicas que julgava falar quando
atravessei nesta manhã o meu terraço para lhes escrever. Simplesmente
observei uma sombra. Uma sombra das telhas sobre os canteiros e flores.
Ainda agora, tiro os olhos desta escrita e confiro-a com o que
transcorre lá fora. A sombra cresceu alguns milímetros. Olho o espaço
de luz que me resta e saio para viver.
(Revista Rio Total, 17 de março/ 2007) CooJornal nº 520
(RT,
1º de maio/2016)
CooJornal nº 982
Affonso Romano de Sant'Anna escritor,
cronista e jornalista Editora Rocco
Transcrição autorizada pelo autor
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