Affonso Romano de Sant'Anna
CUMPLICIDADE DE MÃE E FILHA
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A mãe, com as duas filhas adolescentes, passou por mim na rua
movimentada. Todos os dias passam por nós mães com filhas adolescentes
em ruas movimentadas. Mas aquela, com as suas filhas, chamou-me a
atenção, me fez parar, virar a cabeça para vê-las se afastando de braços
dados num tititi característico.
Disse tititi, e era isto mesmo.
Elas iam periquitando num tititi de mãe e filhas, de fêmea e crias. As
meninas do lado, a mãe no meio. No meio emocional. E a filha da esquerda
dizia: "porque aquele vestido da vitrina"..."mãe, acho que o meu
presente" - dizia a da direita. E a fala de uma e outra foi se picotando
e se afastando deixando rastros assim: "com que sapato devo ir?... "ela
já ganhou a blusa, eu não". E a mãe respondendo: "você não acha que está
pedindo demais?... "já não te dei o sapato que queria?"... "você às
vezes me cansa, para com essa mania de querer tudo o que vê"...
As frases eram banais. E agora ao lembrá-las penso que poderia fazer uma
crônica só dessa conversinha de mãe e filha, a exemplo do que fez certa
vez Fernando Sabino, com frases de mãe ralhando com filho. Mas há algo
diferente que me atrai naquela mãe e filhas. Nelas surpreendi, de
relance, uma coisa chamada cumplicidade. Uma cumplicidade da qual,
talvez, não se dessem conta.
Quem as visse, de um ponto de vista
banal, diria: lá vai uma jovem e bela mãe com duas filhas adolescentes,
que estão aprendendo a ser belas. Mas não era só isto. Era cumplicidade
mesmo, num sentido que eu mesmo estou tentando entender. Por isto, parei
na rua para decifrar o que se passava ante o texto de meus olhos.
E ali mesmo me veio essa frase sensação: as mulheres são mais
cúmplices dos filhos e filhas que nós, os compactos e solitários machos,
cuja cumplicidade acanhada se desloca e vai se exibindo nas mesas dos
bares com os amigos ou nos almoços e reuniões de diretoria. Aí a
confraria dos homens exercita enviesadamente o seu afeto. O afeto e a
agressividade. Porque a cumplicidade não se realiza só em carinhos.
Também nas agressões sibilinas ou explícitas ela se insinua
concretamente.
É isso: a mulher e as duas filhas personificam
algo que eu percebia, mas não tinha ainda configurado. Deixaram assim de
ser três pessoas quaisquer, numa tarde qualquer, de uma cidade qualquer.
Posso até dizer onde isto aconteceu. Foi na Visconde de Pirajá, às 4h23
em frente ao número 444. E se isto teve um cenário tão exato é porque
dentro de mim se desenhou mais claramente essa sensação: as mulheres são
mais cúmplices dos filhos e filhas que nós, os compactos e solitários
machos.
Repito essa frase e acrescento assustado: nós, os
exilados do afeto, por nós mesmos, pelas relações familiares e sociais,
que avalizamos.
As fêmeas têm com as crias uma intimidade
invejável. Os machos são limitados. Limitam-se até biologicamente. A
intimidade física, verbal, afetiva das mães com os filhos e filhas
começa no ventre. Aí, nós os homens já estamos (literalmente) meio por
fora. E depois vem a amamentação, nova cumplicidade exteriorizada. E
depois ainda os passeios diários com a criança pelas praças ou praia,
levar e trazer ao colégio e à piscina, pegar e levar à aula disto e
daquilo, enquanto o pai está lá dispersando sua afetividade em papéis,
que jogará no lixo diariamente ou arquivará para poder jogá-los todos
pela janela no fim do ano.
Enquanto isto a cumplicidade entre a
mãe e as crias continua. Com a filha, as primeiras revelações e
escolhas: do sutiã, do batom, da roupa de aniversário. A filha
aprendendo a dizer aqueles nomes da vaidade e da descoberta do corpo:
vestidos drapeados tecem conversa de uma e outra; tecidos plissados e
evasé costuram suas preferências; os cremes para a pele, os emolientes,
os chás para avermelhar ou clarear os cabelos tingem suas horas; as
técnicas de depilação, as visitas ao cabeleireiro, a peregrinação
peripatética pelas butiques da vida, tudo isto vai desenrolando os
intermináveis e sensuais rituais femininos.
E o homem meio de
longe, meio de banda. Até a primeira cueca para o filho é a mãe que
compra. O homem parece assumir o filho só na hora de passar-lhe a
oficina e o escritório. Alguns conseguem cumplicidade na hora de jogar
tênis, mergulhar, conversar sobre a moto, lavar o carro. Mas é pouco.
Enquanto isto, por divisão de trabalho, os homens estão alienados
desse contato físico-emocional com os filhos. Claro, existe o fim de
semana. Aí é dado ao pai lembrar-se de que é pai. Mas é pouco. Na
França, domingo de manhã, o pai sai com os filhos para comprar pão e
jornais. Nos Estados Unidos, nos feriados, os políticos se fazem
fotografar com a família esquiando e cavalgando. Mas é pouco.
Enquanto isto, mães e filhas desfilam a natural cumplicidade numa rua
qualquer, numa cidade qualquer aos olhos de qualquer um.
(Revista Rio Total, CooJornal nº 1.065, 15-02-18)
Affonso Romano de Sant'Anna escritor,
cronista e jornalista Editora Rocco
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